sexta-feira, 1 de abril de 2011

Parte I- Laranja da Terra





Parte I 
Laranja da Terra 
(município de Iúna, Espírito Santo,nascimento até 7 anos) 

"


Não me deixem fugir senão eu caio da pinguela
                 
Eu tinha menos de quatro anos e morávamos numa casa amarelo-ocre, perto da estrada na fazenda do Vovô Américo, meu avô materno, na Barra do Córrego Laranja da Terra, município de Iúna, no Estado do Espírito Santo. Quando meu pai nasceu, no mesmo lugar, era município de Lajinha, Minas Gerais. Meu avô sempre dizia que, maldita a hora em que o João Gomes, um senhor que morava na Padaria, (lugar onde havia uma Igreja Católica, uma Igreja Presbiteriana e a Padaria do João Gomes (`as margens do Córrego José Pedro), saiu a cavalo, num dia chuvoso, arrecadando assinaturas para que Laranja da Terra passasse a pertencer ao Espírito Santo. É que ficava muito mais próximo a Lajinha do que a Iúna, local difícil para se chegar, com serras que separavam naturalmente a localidade da nova sede do município.
A linha divisória dos dois estados nesta região foi indefinida e variou muito, desde o tempo em que eram capitanias,  e quando meu  pai nasceu  em 1918, Laranja da Terra pertencia a Lajinha, que antes fora parte de Rio Pardo (Iúna, Espírito Santo), mas com um acordo de 1916, já era Minas. Entretanto, devido ao abaixo assinado que mencionei, voltou a ser Espírito Santo, e eu, nascida em 1953, sou capixaba.
Meus pais tinham o seu próprio pedaço de terra, que consistia de uma plantação de café, um bananeiral, um pomar com todos os tipos de laranjas e uma variedade de frutas, além da horta no terreiro da casa, com verduras, couve, alface, taioba, serralha, almeirão e plantas medicinais, para fazer chazinhos.  E um livro de Homeopatia e, mais tarde, outro com o título de “As plantas curam” que meu pai usava para nos tratar quando ficávamos doentes.
Primeira casa dos meus pais Norival e Erandi

Sou a filha mais velha e meu pai, contava que eu já estava grandinha, mas não abandonava meu bico de borracha fina, vermelho (tipo balãozinho), mas ele me convenceu a jogá-lo para as galinhas. 
-Fora, eu falei... Mas, `a noite, comecei a chorar antes de dormir, mas ele me explicou que a galinha tinha levado a chupeta e não tinha como resgatá-la. Dormi e me esqueci...
E que, quando ele estava trabalhando, eu perguntava:
-Pai, cê tá baiano? 
Na frente da casa, um pé de graxa, sempre-vivas e beijos, bons de estourar os balõezinhos de sementes.
Ainda posso sentir o gosto das mexericas enormes, plantadas no cafezal do grotão, do caldo de cana espremida na engenhoca perto da cachoeira do córrego e dos inhames que meu pai cozinhava num tambor de querosene para tratar dos porcos. Minha irmã Etelvina, (somente treze meses mais nova do que eu e companheira inseparável) e eu,  enfiávamos os dedos nos inhames ainda meio quentes, e como eram gostosos mesmo sem sal ou qualquer tempero... Nos fundos da casa havia uma tulha, onde eram guardados os grãos, arroz, milho, feijão e cachos de bananas pendurados para madurar, para serem consumidos por nós, pelas galinhas e porcos também. Adorávamos espremer as bananas-ouro direto na boca.
Quase todas as vezes que o meu pai ía a Lajinha, a cidade mais próxima, sozinho ou conosco, comprava Toddy, aveia para fazer mingau, biscoitos Maria, rosca seca, que a gente comia molhando no café com leite ou na água doce, quando estava doente, e azeitonas. Eu era louca por azeitonas, que eu chamava de "frutinhas" . Minha mãe contava que, certa vez, quando era muito pequena, comi tantas azeitonas sem mastigar direito que, `a noite, tive uma grande dor de barriga. Na tentativa de diminuir os gases, meu pai fez uma massagem. Soltei um tiroteio de frutinhas nele. 
Ele sempre ajudava minha mãe em todas as tarefas da casa. No domingo de manhã, cortava nossas unhas e checava nossas orelhas antes de tomarmos banho e vestirmos os vestidos que minha mãe costurara para nós, alguns bordados e sempre engomados, para irmos para o culto na Congregação Batista, que funcionava na casa anexa `a venda do tio Gil, irmão da minha mãe.
Todas as manhãs, meu pai saía cedo para a lavoura de café, no morro depois do rio. Por volta das dez e meia, minha mãe pedia para que o chamássemos para vir almoçar. 
"Pai...ê!!!!", gritávamos com toda a força.  E ele respondia da maneira que nunca vi ninguém mais responder: "Ê... eu..." Dali a pouco, estaria almoçando conosco, ele e minha mãe na mesa grande, nós na mesinha que ele havia feito, com três banquinhos de tamanhos diferentes, um para mim, um para Etelvina e outro para Aneci, uma garota que estava morando com a nossa família na época e ajudava minha mãe na casa, pois ela, além de costurar para fora, ensinava corte e costura. Eu achava interessante quando a Anita, filha da tia Lilica, irmã do meu pai e aluna de corte e costura da minha mãe, que é a única de que me lembro, montava os vestidinhos de papel.
Quase todos os dias, meus pais nos levavam `a casa do vovô e normalmente ficavam lá até tarde quando já estava escurecendo, para ouvir as notícias no rádio, ou simplesmente conversar. Na volta, meu pai carregava minha irmã  mais nova nas costas e eu ía andando segurada `a mão da minha mãe, que estava grávida da minha outra irmã. Mas, `as vezes, eu ficava com sono e queria colo também. Meu pai, então, me mostrava os vagalumes e me falava da cidade deles, cheia de luzes. Daquele momento em diante, eu ficava encantada observando a cidade dos vagalumes e caminhava animada até chegar em casa.
Adorava aquela vida. Era prosa e muito  mimada pelos meus pais, tios, tias, avós e primos. Toda  vez que vinha alguém da casa do vovô `a nossa casa, eu aproveitava para ir também e ficava lá até meus pais me buscarem.
Mas, um dia, decidi que já podia ir sozinha. Peguei o trilho do cafezal e comecei minha jornada, até que cheguei ao córrego, que não era muito largo nem muito profundo, mas que tinha apenas uma tora com um lado lavrado que sevia de pinguela. Enquanto estava atravessando, perdi o equilíbrio e caí dentro d'água. Felizmente, além de não ser muito fundo, um empregado do meu pai, de nome Zico, estava por perto, ouviu meus gritos e veio me socorrer. Não me machuquei, mas fiquei com meu orgulho ferido. Estava toda molhada e com medo de que meus pais me repreendessem. (Não que eles nos batessem com frequência, mas me lembro de que uma vez minha mãe me bateu por algum motivo. Fui para atrás da tulha e comecei a chorar e a cantar um corinho da igreja ao mesmo tempo: "Oh, eu sou feliz...")
Então comecei a chorar, não um choro normal que eu choraria se não tivesse que explicar a minha travessura. Decidi me fazer de vítima e, quando cheguei em casa chorando copiosamente, disse aos meus pais; "Por favor, não me deixem fugir outra vez, senão eu caio da pinguela." 
Eles me levaram para dentro, trocaram minhas roupas molhadas sem me dar nenhum esculacho, mas eu podia perceber que estavam se segurando para não rir. Anos depois ainda contavam  minha peripécia para os outros. Só aí eu podia rir também.

Etelvina sempre foi uma criança muito esperta. Apesar de ser treze meses mais nova do que eu, prestava atenção a tudo o que estava acontecendo, até `a mudança do tempo. Certa vez, estava com jeito de chuva e ela falou pro meu pai "Ô pai, precisamos guardar essa lenha, porque vai chover."

Não muito longe da nossa casa amarela, na curva da estrada, perto da cachoeira do Córrego Laranja da Terra, havia uma pequena casa, a casa da cachoeira como chamávamos, de chão batido, cimentado com estrume de boi, as paredes pintadas com barro branco e desenhos coloridos, feitos de sumo de folhas e frutas, de diferentes matizes.  Nenhuma obra de arte, que eu por acaso encontre nos museus de Belas Artes, irá superar `aquele mural.
Seu Xavier, o morador já bem idoso,  estava sempre doente e minha mãe ía lá algumas vezes por semana, aplicar-lhe injeções. Ela era uma costureira por profissão, mas uma espécie de enfermeira para as pessoas da fazenda, e eu gostava de ver a chama azul e sentir o cheiro do álcool queimando,  quando ela estava fervendo o aparelho de injeção.  Também gostava do café ralinho que a D. Santinha, esposa do Seu Xavier, dava pra gente beber.       



De tempos em tempos, passava na estrada um caminhão do tipo baú, azul escuro, com letras grandes rosa e branco, o caminhão da Confiança, que vinha abastecer de balas e doces, a venda do Tio Gil, irmão da minha mãe. Algumas
vezes, meu pai comprava vidros grandes de "ovinhos de garrincha", como ele chamava os amendoins torrados cobertos de chocolate, diretamente do caminhão. Certa vez, ele encontrou-se com o caminhão na estrada e comprou duas latas de biscoito decoradas, para mim e Etelvina, e pediu ao motorista que parasse lá em casa e fizesse a entrega . Estávamos brincando no tereiro, quando o caminhão parou e o homem nos entregou as latas, sem maiores explicações.  Ficamos radiantes e não podíamos acreditar no que estava acontecendo, tinha que ser um milagre. Corremos para dentro, para mostrar para a nossa mãe, os presentes que havíamos ganhado do "Homem da Confiança". Minha mãe não disse nada, pois também não sabia a origem das latas, mas não se preocupou. Não havíamos saído e alguma explicação haveria para o ocorrido.
Quando meu pai chegou, fomos contar-lhe o milagre e ele disse que havia pago por elas, o que nos deixou um pouco desapontadas.
Apelidamos nossas latas de biscoito de "baús" e, algum tempo depois, quando entramos para a escola, usávamos os nossos "bauzinhos", as latas, para colocar os objetos escolares. Anos mais tarde, depois que nossa irmã Clarinda nasceu e já tinha uns dois anos, meu pai perguntava se ela queria ir para a escola e ela respondia que não, pois "não tinha láspi e nem baú". 


Uma vez por ano ou mais, era tempo de fazer farinha, no galpão ao lado das tulhas de guardar café, perto da venda do tio Gil. A família toda, meus pais, tios, tias, Vovó Leonina e uma turma de empregados, estariam ocupados em descascar, ralar e prensar mandiocas para fazer a farinha. Por meses ou pelo ano, teríamos farinha para fazer farofa, o polvilho para os biscoitos e brevidades, que eram assados todos os sábados no forno grande na varanda da fazenda do Vovô Américo. Durante as semanas em que a fazeção  de farinha estava acontecendo, a comida vinha da casa do vovô em bacias grandes; o arroz, o feijão, a carne, o angu e a verdura, cada qual num canto. Era uma verdadeira festa para nós, crianças.


Família da vovó Etelvina (assentada).
Em pé: Tio Astrogildo, meu pai (Norival),
 tio Nolmerindo, tio Atardes, tio Osvaldo, tia Valmerinda,
tia Lilica (Maria) e tia Valmira
Logo acima da cachoeira, começavam as terras herdadas do meu avô paterno, Vovô Alvim, que falecera muito novo. Tio Osvaldo, irmão mais velho do meu pai, morava num sítio logo acima e tia Nair, a esposa dele, era uma mulher muito prendada, sabia cozinhar muito bem e tinha a casa mais organizada e limpa que já conheci. As pessoas diziam que, se alguém estivesse doente e precisasse de um grãozinho de poeira da casa dela para remédio, iria morrer, pois não iria encontrar. Tio Osvaldo, `as vezes parava lá em casa, quando vinha de Manhumirim  onde ía levar café, e nos dava balinhas. O próximo sítio era o da tia Valmerinda e tio José  Ruela.
Depois, subindo o morrinho, do lado direito, estava a casa da Vovó Etelvina. Tia Lilica e os filhos moravam com ela e também mantinham tudo muito limpo e organizado. O casarão de dois andares, tinha um salão enorme no segundo andar, com bancos de madeira, fotos nas paredes, um relógio de carrilhão e os quartos ao redor da sala, usados para visitas. Os mais usados eram os do lado da escada que descia para a cozinha. A despensa no andar de baixo era enorme e sempre cheia. Não faltava o melado e a farinha de milho  feita no monjolo, para a sobremesa, e o detalhe do qual mais me lembro é que o leite era fervido com uma pitada de sal.  Eu gostava de ficar deitada no assoalho da sala grande no andar de cima da fazenda, admirando as fotos na parede e ouvindo do relógio de carrilhão marcar as horas. Mas a escada do salão no andar de cima para a sala do primeiro andar, tinha umas manchas escuras, de quando o vovô Alvim matava bois e pendurava a carne para ser vendida e nós tínhamos medo da escada, pois contavam que o filho do tio Astrogildo, João Alvim, havia caído daquela escada e, na minha cabeça, as marcas escuras eram do sangue do João Alvim, que não cheguei a conhecer, que morrera algum tempo depois, de doença não relacionada com o tombo. Tio Astrogildo e tia Otília moravam no lado esquerdo do córrego, tio Ataídes e tia Lili, próximo da vovó Etelvina, Tio Nolmerindo e tia Ilda no canto `a direita, perto do açude. 
Tia Valmira, irmã do meu pai, casada com o tio Raivil, primo da minha mãe, era a única que morava do outro lado, perto da Fazenda do Tio Lindolfo, irmão do vovô Américo e pai do tio Raivil. Passando pela estrada, eram uns três quilômetros, mas cortando pela lavoura no  alto da pedreira, chegava-se em pouco  mais de uma hora de caminhada morro acima e depois morro abaixo. Lá havia as melhores jabuticabas que já comi e ela sempre fazia um biscoito de polvilho frito, delicioso.
Na maioria das vezes, usávamos o caminho pela casa da tia Julica, irmã da Vovó Etelvina, e aproveitávamos para visitá-la. Algumas vezes, parávamos na casa do tio Eusláquio, irmão da Vovó Etelvina também. A outra irmã dela, tia Filhinha, morava bem perto da Vovó Etelvina, acima do açude do tio Nolmerindo, e íamos lá frequentemente também. 




                                  Mudança para a casa do Vovô Américo


Casa da Fazenda do Vovô Américo
A fazeção de farinha estava de vento em popa. Havia muitos jiraus de polvilho secando ao sol, brancos como  neve. Devia ser inverno, que naquela região montanhosa, atinge temperaturas baixas para o clima tropical brasileiro; mais ou menos quatro graus centígrados `a noite, porque uma noite, acordei com a voz do Zico, o empregado do meu pai que me tirara do córrego, batendo na janela e chamando a Aneci, pedindo as blusas de frio dos meus pais. Aneci era a garota de mais ou menos treze anos de idade, que estava morando conosco e ajudava minha mãe nas tarefas domésticas. Achei muito estranho que meus pais não estivessem em casa. Aneci entregou as blusas para ele e mandou que eu fosse dormir novamente, sem me dar nenhuma explicação.
Na manhã seguinte, ainda com escuro,  meu pai chegou, explicando para nós que a Vovó Leonina havia morrido de repente, na noite anterior. Eu era muito chegada `a minha avó, de quem herdei o nome. "Ó meu Deus, como é que vou arranjar outra avó tão boa como a Vó Nina?", falei. Minha irmã Etelvina,  um ano mais nova do que eu, que recebera o nome da outra avó, e que parecia ter solução para tudo, depois de ter perguntado onde é que a vovó tinha ido e ter sido informada de que ela estava no céu, perguntou: "Por que a gente não leva um remédio pra  ela, lá no céu, pra ela sarar e ficar boa?"
Fiquei sabendo depois, que meus pais ainda estavam na cozinha na noite anterior, depois de nos colocarem na cama, quando ouviram os gritos da tia Ilca "A mamãe morreu..."
Minha mãe (Erandi e vovó Leonina)
Vovó Leonina tinha apenas cinquenta anos, mas era um pouco obesa. Sentira uma friagem nos pés e pedira ao Vovô Américo para colocar mais cobertores e como isto não resolvera, Vovô mandara o tio Jenus buscar folhas de laranjeira no quintal pra fazer um chá. Tio Jenus ainda estava lá fora quando ela faleceu. Foi nessa hora que a tia Ilca começou a gritar.
Não me lembro muito do dia do enterro, exceto de que foi um dos piores dias da minha vida. A casa do vovô estava cheia de gente e por algum tempo, que pode ter sido apenas uns cinco ou dez minutos, mas que para mim parece ter sido uma eternidade, fiquei perdida no meio daquela multidão, indo de um cômodo para o outro, sem encontrar nenhum parente ou conhecido, apesar de quase todos serem parentes ou conhecidos.
O de que eu me lembro perfeitamente é da minha avó dentro do caixão no terreiro, ao lado da longa escada de cimento da porta da frente, o seu rosto sereno, como se estivesse dormindo e do culto em que cantaram os hinos do Cantor Cristão próprios para a ocasião, dos quais não me lembro, mas possivelmente o  508 do cantor Cristão "Eu avisto uma terra feliz..." 

Os dias que se seguiram foram muito difíceis para toda a família. Mudamo-nos para a casa do vovô; ele precisava de ajuda. Dos treze filhos, oito ainda eram solteiros, alguns vivendo em casa, outros no internato do Colégio Evangélico em Alto Jequitibá ou no Ginásio Rui Barbosa em Lajinha; o mais novo, tio Filadelfo,  com apenas sete anos.
Ainda me lembro do vovô, homem alto, forte, careca e de olhos azuis, assentado no longo banco de madeira na sala, ouvindo o rádio e fumando o cigarro de palha que preparava com toda a paciência. Estava muito deprimido e algumas noites, acordávamos de madrugada com ele cantando "Passarinhos, belas flores, querem me encantar... oh, vão celestes esplendores... eu quero já voar", que fala da saudade de Jesus e vontade de ir para o céu.
Pode soar muito estranho, mas para mim, de certa forma, apesar de sentir saudades da vovó, a vida ficou ainda melhor. Eu estava morando na casa do vovô, junto com tios e tias...


A fazenda produzia de tudo, milho, arroz, feijão, mas o principal produto era o café, que meus tios despolpavam para dar melhor classificação. A princípio, vendiam o café para o Alvino, como chamavam o Seu Alvino Heringer, sobrinho do vovô Américo,  dono da fazenda vizinha. Mas depois passaram a comprar café também e o tio Gil tinha um grande armazém onde era feita a catação, para retirar impurezas e os grãos imperfeitos, operação que envolvia muitas pessoas, a maioria mulheres, em bancas montadas dentro da grande tulha. Eu adorava ajudar na catação.
A semana era movimentada  na fazenda. A comida feita num fogão a palha de café; fogo intenso mas com pouca fumaça. A moega de madeira no lado de fora da cozinha, era conectada ao fogão por um tubo de metal com um registro, aberto de acordo com a necessidade. Por dentro do fogão passavam os canos da serpentina que esquentava a água do chuveiro. O forninho do lado do fogão quase não era utilizado para assar; o mais usado era o grande forno `a lenha da varanda.  Mas no inverno, nós, crianças, assentávamos em cadeiras na beira do fogão e colocávamos  os pés enrolados num cobertor dentro dele, para nos aquecermos.
Tio Gil, vovô Américo, minha mãe (Erandi), tio Joassi,
 tia Edil, tio Joanilson, tia Elma e tio Filadelfo
Quando era tempo de fazer farinha, família e empregados estariam ocupados em descascar e ralar mandiocas e prensar a massa para extrair o polvilho. E torrar a polpa num forno grande, na realidade, uma tacha grande e rasa, com dois rodinhos de madeira, que duas pessoas mexiam sem parar, uma de um lado e a outra do outro, para não queimar o fundo.
Uma vez por semana, minhas tias e uma empregada de nome Ilda contavam casos e riam enquanto lavavam roupas num enorme tanque de cimento. As roupas eram postas de molho, ensaboadas, esfregadas `a mão e postas num tacho de água para ferver, exceto pelas domingueiras ou as que saíam tinta. A seguir eram colocadas para corar nos pés de capim cidreira na beira do terreiro; o sol tirava as manchas que restavam. Depois, batidas no batedouro, enxaguadas e penduradas no varal para secar. As camisetas e cuecas dos tios que estavam no internato eram marcadas com o nome, usando um carimbo esculpido na semente de abacate, a nódoa funcionando como tinta permanente. Água sanitária era usada para lavar as roupas brancas e, certa vez, meu tio Filadelfo tinha ido a Lajinha com o tio Gil e minha mãe encomendou uma garrafinha. Chegaram tarde e ele dormira na casa do tio Gil. Pela manhã quando vimos que o tio Filadelfo estava vindo na estrada, corremos para encontrar com ele. Caminhando, ele balançava a garrafinha escura na mão, enquanto contava como tinha sido a viagem. De repente, talvez por causa do movimento e dos gases formados dentro da garrafa, esta perdeu o fundo, derramando o líquido em cima de mim, que estava na sua frente. Tio Filadelfo ficou todo desapontado e corremos até em casa. O vestido xadrez de verde que eu estava usando começou a desbotar e a se rasgar em poucos minutos. Minha mãe me levou para o banheiro e me colocou debaixo do chuveiro, lavando com todo tipo de sabão que tinha em casa. Mas, por dias, eu fiquei com o cheiro de água sanitária que nenhum perfume conseguia eliminar.
A passação era um ritual noturno, e, `as vezes, deixavam que eu e minha irmã Etelvina passássemos as roupas menores.
Meu tio Filadelfo, apenas quatro anos mais velho do que eu, minha irmã  Etelvina e eu, gostávamos de cantar hinos do Cantor Cristão durante estas noites, fazer jogos de barbante, jogar belisca, fazer gaita de papel no pente e outras brincadeiras. Todas as noites, também, minha mãe (Erandi) dirigia o culto doméstico, líamos a Bíblia, o “Manancial” (uma revista com a citação bíblica e a explicação), falávamos versículos e orávamos antes de dormir. E, `as vezes, tia Ilca, tio João ou tia Elma, tocavam o órgão e cantávamos acompanhando. Eu gostava de cantar “Cristo é quem nos manda como luz brilhar” e caprichava no “tu no teu cantinho... e eu no meu”. Ou o tio João, com a sua possante voz de tenor, iria tocar o órgão e fazer um solo “Jerusalém... Jerusalém”.
 
Vovô Américo lavava os pés na bacia de cobre, esfregando um pé no outro; não tomava banho todos os dias, mas também não era necessário pois não fazia muito exercício.
Quando o grande relógio de carrilhão da sala cantava “Hora certa, hora certa...” e  dava sete badaladas, era a “Hora do Brasil” no rádio (depois mudou para “Voz do Brasil”) que começava com a ópera “O Guarani” (Tan...tan...tararan...tan...) e mantinha todos informados sobre os últimos acontecimentos mundiais, uma rotina solene que meu avô não perdia por nada. Na parede, o quadro dos dois caminhos, comuns em muitas outras casas, além de outros dois, um com a foto do meu bisavô João Carlos Heringer, pai do vovô Américo Marcelo Heringer e o outro com os pais da vovó Leonina de Freitas Heringer, vovô Filadelfo Mariano de Freitas  e vovó Arminda Belarminda Soares de Freitas. 
Minha mãe costurava para a família toda e para outras pessoas também. Nos dias de chuva, fazia roupas para as nossas bonecas e dizia que estava costurando para as netas. Ensinava a gente a pedalar a máquina Singer, que a princípio era difícil fazer  andar só para a frente. Para praticar, ela nos deixava costurar papel, sem linha na agulha. Quando ficamos maiores, ela nos ensinou a fazer roupas para as bonecas. Etelvina, mais nova do que eu, fazia os vestidinhos com detalhes, bolsos, golas e modelos complicados; eu fazia os meus o  mais simples possível. Aliás, ela sempre foi alerta e cuidadosa com tudo. Certa vez, meu pai foi ao Rio de Janeiro e comprou uma boneca enorme para ela e um boneco para mim. O meu chamava-se Gabriel. A dela, eu nem me lembro, pois durou pouco. A boneca era de papelão e ela deu-lhe um banho caprichado que dissolveu-a todinha. Mas mesmo os nossos bebezinhos de borracha ganharam todo o cuidado dela. Cortou as unhas (dedos) das bonecas.

No dia de matar capado, o movimento começava cedo. Etelvina, eu e tio Filadelfo, descascávamos bastante alho. Meu pai (Norival) depois de dar uma machadada com a parte não cortante na cabeça do porco, levantava a pata dianteira do animal e perfurava com a faca na altura do  coração, com o cuidado de ter uma vasilha que coletava o produto, para fazer o chouriço de sangue. Depois cobria-o com palha de milho e ateava fogo, tirava água fervente do tacho e ía entornando sobre o bicho e, com uma faca bem afiada, raspava a pele eliminando pelos que houvessem resistido ao fogo. Um corte na barriga e retirava os órgãos internos. Minha mãe e minhas tias, além da Ilda, a empregada, iriam cozinhar, fritar a carne, fazer linguiça e chouriço de miúdos e chouriço de sangue, rechear o bucho...  E o cheirinho era irresistível. Eu gostava de comer o miolo do porco, pois diziam que era bom para o cérebro. A carne frita era colocada em latas de querozene limpas, junto com a gordura, e podia ser consumida por muito tempo sem que estragasse. O sabão preto, usado para lavar a roupa, era feito com  "diquada", o produto de água passada pela cinza num barrileiro, e restos de torresmo do qual se havia espremido a gordura e outras partes do porco que não serviam para comer.
Não me lembro se a cozinha da fazenda era de chão batido quando nos mudamos para lá, mas sei que num canto da cozinha, onde ficava o filtro de água, houve uma época em que se abriu um buraco que nós chamávamos de Japão. Se cavássemos um pouco mais, chegaríamos do outro lado do mundo...
O quintal da fazenda tinha muita laranja de todos os tipos, lima, campista, cravo (minha favorita) e manga, além do pomar perto da venda com aquelas jabuticabas pretinhas, e as mexericas enormes do grotão... Quando chegava a época das goiabas, o movimento era grande. Colher, limpar, cortar, cozinhar, moer ou passar na peneira e finalmente secar no tacho até chegar `a consistência de colocar nas  caixas  retangulares de madeira, que conservava o ano todo.  Goiabada em pedaço, calda ou cascão, comida com queijo em pedaço ou ralado, que sobremesa gostosa! Os queijos eram feitos em formas redondas de madeira e depois enrolados em panos de saco e colocados numa tábua na parte de cima da janela do lado de fora da cozinha para madurar (maturar) . Todos os dias, eram retirados para serem esfregados com sabugo, lavados e colocados novamente para curar até o ponto desejado.
Na colheita do milho, descascar, moer o milho verde na máquina de moer carne, passar na peneira para tirar a bucha e fazer pamonha e papa (ou mingau de milho verde). E algumas das espigas com seus cabelinhos ruivos, viravam nossas bonecas também.
Quando chovia o bastante para encher a vargem, Vovô Américo pegava a “Flaubert” e, com boa pontaria, atirava nas traíras, sem perder nem um tiro. Frango para o almoço? Havia duas opções: pedir ao vovô para matar com tiro (uma vez matou dois com um tiro só) ou mostrar o frango desejado para o Campeiro, o cachorro preto do tio Filadelfo, que o trazia sem machucar.
Certa vez, o campeiro fugiu. Depois de vários dias, alguém falou para o meu pai que o havia visto em Crisciúma, um córrego a mais ou menos sete quilômetros de distância. Meu pai foi lá, de caminhão,  buscá-lo. Para improvisar uma coleira, usou  embira de bananeira trançada, amarrada num pedaço de pau e o trouxe para casa. Tio Filadelfo ficou muito feliz.
Lembro-me de que uma vez em que ele perguntou pra minha mãe: "Erandi, você deve ser uma pessoa muito feliz, não é?" Ela respondeu que sim e ele complementou: "O Norival é muito bom pra você."
Depois que o Campeiro morreu de velhice, tio Filadelfo teve um cachorro castanho chamado Rojão, que o seguia onde ele fosse.
Certa vez, minha mãe foi para um congresso das senhoras na Igreja Batista de Chalé e deixou a Etelvina e eu na casa da tia Lilica, irmã do meu pai. Tio Filadelfo ficou com o vovô. Uma tarde, ele apareceu na casa da tia Lilica. Na verdade, não na casa, mas no terreiro, atrás da tulha, perto da estrada. Tinha os olhos vermelhos e parecia ter chorado. Perguntei-lhe o que havia acontecido e ele simplesmente me disse, entre soluços "Aquele veado... ele viu o cachorro sim".
Um homem chamado C, que tinha uma máquina de limpar café havia atropelado e matado o Rojão. Tentei consolá-lo e fazê-lo acreditar que teria sido um acidente, mas ele dizia que não. Comecei a chorar junto com ele. Fiz de tudo para convencê-lo  a entrar na casa da tia Lilica, mas ele não quis. Ficamos assentados os dois por um bom tempo e depois ele foi embora.
Nos três dias em que Etelvina e eu ficamos na casa da tia Lilica, aprendi a andar de bicicleta, uma bicicletinha de criança do meu primo Ailton, filho  do tio Ataídes. Fiquei tão excitada com a minha nova habilidade que, quando minha mãe apontou lá no morro, vindo a pé, a uns quinhentos metros de distância, de onde se avista a Serra do Caparaó, onde fica o Pico da Bandeira (terceiro mais alto do Brasil, com 2.891,32 metros de altitude) eu a vi e comecei a gritar "Ô mãe, eu aprendi a andar de bicicleta". Ela não estava entendendo, e eu repetia mais alto: "Eu aprendi a andar de bicicleta".
Quando chegamos em casa, tio Filadelfo já estava melhor.

No dia em que Etelvina e eu voltamos de Manhumirim trazendo caixinhas com brincos, uma meia lua de ouro com um rubi na parte inferior mais larga,  estávamos tão excitadas que não pudemos nem mudar de roupa antes que minha mãe furasse nossas orelhas. Ela, que era a enfermeira oficial do córrego e tinha prática no ofício, pegou uma cortiça, colocou na parte posterior de cada orelha, desinfetou uma agulha com álcool e furou com mão firme. Doeu bastante, mas não choramos nem demos sinal de que havia doído.

Pouco tempo depois que a vovó Leonina faleceu, fomos a Itabira, no  Norte (do Rio Doce), visitar os parentes, vovô Filadelfo, meu bisavô, pai da vovó Leonina, tio Reginaldo, irmão dela, tio Adiles e tia Elzina, tio Joel e tia Jeny, tio Jeronil e tia Adenair.
Fomos de ônibus e voltamos com o Dr. Elói Werner, sobrinho do meu avô, advogado que estava cuidando do inventário da vovó Leonina. Não sei se todas, mas pelo menos algumas das terras onde moravam os irmãos da minha mãe, em Itabira (hoje Itabirinha), haviam sido compradas pelo vovô Américo, dessa forma, herdaram lá e não em Laranja da Terra, como os demais.
Dr. Elói tinha uma rural e fizemos uma viagem muito agradável com ele, o tio Joanilson também conosco.
Quando paramos em Caratinga, ele, que morava em Manhuaçu, não disse nada ao meu pai, mas foi a um telefone e ligou para a esposa, avisando que estávamos com ele.
Ao chegarmos em Manhuaçu, já tarde da noite, meu pai pediu-lhe para nos deixar no Hotel Zapalá, mas ele disse que iríamos para a casa dele. Tio Joanilson dormiria na casa de um outro parente dele.
D. Edith, a esposa do Dr. Eloi, estava com o jantar preparado e as camas arrumadas, esperando por nós. No dia seguinte, ainda foi mostrar os vestidos das filhas dela para minha mãe, que não perdia a oportunidade de pegar um novo modelo ou o “risco” para um bordado.
Tio Joanilson, entretanto, dormira com fome, pois na casa da prima onde dormiu, não foram avisados, ou não sabiam, que ele estava sem jantar `aquela hora da noite.
Meu pai perguntou a ele por que não havia falado nada, pedido algo para comer, mas ele, adolescente e tímido, não o faria. E o fato de ser adolescente talvez tenha contribuído para que a fome fosse maior.




Etelvina, Clarinda e eu (Leonina)
Quando minha irmã Clarinda nasceu, em 6 de janeiro de 1957,   poucos dias antes de eu fazer quatro anos, foi uma alegria geral e uma resposta aos pedidos que eu e Etelvina fazíamos toda vez que passava um avião no céu "Ô avião, traz um neném para nós", um costume das crianças daquelas bandas, na época. Etelvina tinha menos de três anos e queria saber onde estava o outro neném, pois havia passado uma mulher com crianças gêmeas lá em casa poucos dias antes e ela presumiu que todos os bebês viessem em duplas. Meus pais haviam escolhido o nome Raquel para ela, mas como semanas antes uma prima da minha mãe, Carmelita, havia tido uma Raquel, decidiu-se por Diva, um nome curto e fácil e de uma conhecida deles, que nunca conheci. Eu interferi dizendo que "Diva não, Diva é feio".  Deixaram a menina sem nome por algum tempo,  na esperança de que eu mudasse de idéia.  Depois de vários dias, meu pai levantou cedo, poliu o F6, um Ford azul que precisava de manícula para pegar, engraxou os sapatos, raspou a barba e aparou o bigode e estava pronto para sair para Pequiá, a sede do distrito, para registrar o bebê. Falou baixo para minha mãe, mas de uma forma a me testar sobre o nome. "Ela acaba se acostumando..." Eu ouvi e comecei a minha ladainha novamente "Diva não, Diva é feio..." Como tudo estava preparado para o meu pai sair e o nome Raquel estava fora de cogitação, pensou um pouco e, lembrando-se do nome de uma prima dele que morava no Estado do Rio e nunca conhecemos, me perguntou "E Clarinda, você gosta?" "Qualquer nome",  respondi; "...mas Diva não".  Perguntou `a minha mãe se ela gostava do nome e ela disse que sim. Poderiam ter colocado Raquel, pois Carmelita se mudou, nós também, e se vimos a Raquel, foram apenas algumas vezes.

Clarinda se tornou o xodó da casa, gordinha e rechonchuda e tinha o apelido de “Lindinha”. Tio Jenus lhe ensinava a cantar e a dançar umas musiquinhas apimentadas "Dançá agarradinho é bom, namorá agarradinho é bom... Fico todo mole-mole, todo sujo de baton..." e "Eu tava na peneira, eu tava peneirando... Eu tava no namoro, eu tava namorando..."  Era muito engraçadinha. Lembro-me de uma vez em que alguém estava viajando para Itabira e ela disse que era para dar um abraço no tio Jenoril (Jeronil), tio Zé Rinaldo (Reginaldo) e em todo bichinho de orelha..."
Quando passávamos em qualquer ponto mais alto da estrada montanhosa da região e dava para ver as encadeadas montanhas azuis do Caparaó, ela dizia: "Olha lá o Macaraó".
Clarinda era muito mimada por todos, era o nosso bebê. Além disto, tinha bronquite asmática e por dias a fio ficava doente. Etelvina, apesar de pequenininha, cuidava dela, dava  banhos e contava histórias para ela. Só que ela tinha a personalidade muito forte e quando queria alguma coisa, como o balanço que tínhamos no pé de goiaba no terreiro, não pedia, simplesmente tínhamos que sair e deixar para ela, imediatamente. Senão, eram mordidas e tapas, que não revidávamos. Uma vez, eu estava no balanço e me recusei a sair. Ela, então, subiu no pé de goiaba e quando vi, estava sendo molhada do xixi dela. Até que um dia,  tia Edil me disse "Da próxima vez que a Clarinda te bater ou morder e você não fizer nada, vou te bater também". Clarinda nunca mais me bateu ou mordeu.


As três sobrinhas com tio Filadelfo
Quando eu tinha uns cinco anos, ganhei um velocípede de presente da Marli, minha prima, filha da tia Valmira, irmã do meu pai. Ela era uns dois anos mais velha do que eu e já não usava a condução. Com um assento de madeira e um ajuste de acordo com o crescimento do motorista, o velocípede foi uma grande novidade para nós. Tio Joel veio com a família, de Itabira (hoje Itabirinha), nos visitar e nós, junto com as crianças dele, tanto usamos o velocípede, que acabou por cortar o pedal.

Não era tradição para nós, comemorar aniversários. Possivelmente porque havia sempre tanta gente na fazenda que o dia a dia já era uma festa. Além disto, a ênfase era dada a alimentar tantas pessoas quantas fosse possível e não gastar com festas (nunca ouvi nada sobre isto; eu suponho que pensassem assim). Também, ninguém na casa era especialista em confeitar bolos, e, se fôssemos comemorar todos os aniversários com festa, provavelmente haveria uma festa por semana.  Quando completei seis anos, entretanto, lembro-me de que houve um culto de oração lá em casa, com café com leite e broa, seguido do "Parabéns pra você". E o resultado foi ótimo. Ganhei algumas notas de um cruzeiro e uma lata de Pó de Arroz Lady (que se pronuncia ''lêide", mas que pronunciávamos "ladi" mesmo).

Numa época, minha mãe trouxe uma filha de uma prima dela, Marta, que estava noiva, para a nossa casa e estava fazendo todo o enxoval de casamento dela. O noivo se chamava Mário.
Num dia em que faltou água na casa do vovô, possivelmente porque os animais haviam arrebentado os canos ou coisa assim, tia Edil, tia Elma e Marta foram lavar roupas no rio. O dia estava quente e elas começaram a brincar de jogar água uma na outra, até que ficaram todas molhadas.
Quando, `a tardinha, o noivo, Mário, chegou lá em casa, Etelvina foi correndo contar pra ele que a Marta havia tomado banho no rio.
O casamento foi na casa de outra prima da minha mãe do lado Freitas, Gessi do Ademar Heringer, que também era prima da Marta.
 
Alda e Alcali
A vida ficou ainda mais divertida com a chegada do Seu Manuel Beca, caixeiro da venda do Tio Gil, que tinha uma família bem grande. A esposa,  D. Lídia, os filhos Áurea, Adelina, Adenilce, Abel, Alda, Alcali e Natanael, na época. Fazíamos casinhas de galhos de assapê, amarradas com a fibra do mesmo arbusto, com janelas, portas e telhado. E gangorras de imbaúba, um tronco comprido, anelado e fino, como de palmito. Um furo no meio do tronco, que era colocado de boca para baixo em cima de um toco de madeira  de ponta afilada de mais ou menos uns oitenta centímetros, que enterrávamos no chão, formando uma balança. O mesmo número de crianças agarradas de cada lado empurrando para pegar embalagem e depois montando em cima do tronco e a  gangorra estava rodando sh...sh... Uma vez caí da gangorra que bateu na minha cabeça. Vi tudo escuro, mas fiquei bem em seguida.

Alda era a minha amiga inseparável e quando a mãe dela mandava o Abel ir chamá-la lá em casa, eu a escondia na tulha de palha de café e ficava lá, como se não tivesse nem idéia de onde a Alda andava. Não gostava do Abel, principalmente porque minha tia Elma dizia que eu iria me casar com ele.


Não sei porque, mas houve um tempo em que não havia escola próximo `a fazenda, ou não havia professora, não sei bem. Só me lembro de que a Adelina, filha do Seu Manoel Beca, que tinha uns doze anos, deu aulas particulares para nós e os filhos do tio Gil, na sala da casa dele.  Aprendi a ler e escrever com ela e ainda me lembro da alegria de saber decifrar o que estava escrito em livros. Lia tudo, as revistas "Jóias de Cristo", da Escola Dominical, a revista Almanaque, o dicionário Lello Ilustrado do meu pai e os livretos de propaganda do Biotônico Fontoura, com a história do Jeca Tatu. Todos na família, magricelas, anêmicos... Depois do Biotônico, ficam saudáveis, bem vestidos e calçados. Inclusive os porcos e galinhas na fazenda  passam a usar sapatos.

Depois comecei a ir `a escola regular, que ocupava a maior parte do dia, porque ficava longe, na Fazenda
Congregação Presbiteriana nos Braga

dos Braga, onde havia também um pequeno templo presbiteriano, a uns dois quilômetros de pasto, uma matinha e o grotão do tio Gil com a plantação de milho e feijão. Um trilho bem a pique para subir e mais a pique ainda para descer, no meio da lavoura de café. Na volta cansados, a subida a pique... No inverno, usávamos blusas de frio pela manhã. Mas na volta, estava quentinho e o tio Joanilson, antes de ir também para o internato em Lajinha, costumava amarrar a blusa de frio na cintura dele, a minha ou da Etelvina na cintura da gente e, amarrando as duas mangas, nos puxava morro acima.  Minha irmã Etelvina era magricela e, `as vezes, tio Joanilson a deitava no pescoço dele e pedia para ela ficar esticadinha. Carregava-a atravessada no pescoço como se fosse um cabo de vassoura. Minha mãe preparava a merenda, uma farofa de arroz, ovos e couve com farinha, colocada numa latinha em forma de cilindro (vinha com um pó, uma vitamina da qual não me lembro o nome), que ía no bolsinho de fora do embornal de livros, costurado por ela.  De vez em quando, dávamos a volta por um caminho mais longo, pelo Tinguaciba, para que o tio Joanilson acompanhasse a namoradinha, Zulma, filha de uma prima da minha mãe, Zulina, e neta do Seu Vertulino, até `a casa dela.

A escola consistia de um cômodo grande, onde uma professora excelente e pessoa adorável, D. Arlete Vieira, que vinha de Pequiá todos os dias, dava aulas para uma turma de uns trinta ou mais alunos, de primeira `a quarta série. Passava deveres para um grupo e depois para outro e assim por diante. Nem sempre dava conta de manter todos ocupados. Eu gostava destes intervalos em que eu não tinha  nada para fazer. Achava um lugar escondido num canto da sala onde o Alcione Drumond, (filho da tia Valmerinda, irmã do meu pai; tenho um outro primo, Alcione, filho da tia Lilica) num tom bem baixinho, lia histórias para mim.   O Alcione era muito inteligente e muito engraçado também. A Nailda, uma garota que morava na casa da tia Nair e tio Osvaldo, e que se chamava Nair também, mas teve o "nome mudado" para Nailda, para diferenciar da tia Nair, me lembrou das vezes em que eu e ela acompanhávamos o Alcione, que estava apanhando frutas no pomar de um dos Braga. Corríamos e o deixávamos sozinho com medo de sermos apanhadas. Também me lembrou do nosso Correio, uma caixa que a professora colocara num dos cantos da sala para que trocássemos correspondência. Segundo ela, eu escrevi uma carta para ela, da qual nunca se esqueceu. Como seria bom se ela tivesse esta carta, mas, quem guarda cartas por mais de cinquenta anos?  Eu era ótima em linguagem, mas detestava matemática.
"Vovô viu a uva", na Cartilha da Infância, e um livro de histórias do qual não me lembro o nome, mas que tinha, entre outras, a fábula do "Bicho Folharal", a história de uma raposa que queria beber água, mas estava com medo da onça... Passou mel no corpo e deitou-se nas folhas secas, que ficaram coladas no seu corpo. Ao chegar `a fonte, a onça lhe perguntou que bicho era, e ela responde: "Eu sou o Bicho Folharal". Só que a água lava o mel e as folhas começam a cair... Amava ler, mas detestava a tabuada. 

Depois que o tio Joanilson foi para o internato, tio Filadelfo passou a ser o nosso líder. Certa vez, num dia em que os filhos do tio Gil não foram `a escola, resolvemos matar aula. Ficamos no grotão de manhã até `as onze e meia mais ou menos, simplesmente matando o tempo, tio Filadelfo esculpindo alguma coisa no barranco com o canivete. Houve um hora em que começou a chover e nos escondemos numa cabana feita para guardar o feijão colhido. Passado o tempo da aula, voltamos para casa. Só que um rapaz dos Braga havia passado na estrada e nos visto e quando chegamos em casa, todos já sabiam da nossa aventura. Meus pais não nos puniram, tampouco o vovô puniu o tio Filadelfo. Apenas nos disseram que aquela não era uma boa atitude e não deveríamos repetí-la.
No ano seguinte, D. Arlete foi lecionar na escola que abriram na fazenda do pai dela, Seu Joãozinho Vieira, em Pequiá. Uma professora recém-formada, de Guaçuí, veio lecionar na nossa escola. Calculo que não sabia nada sobre a vida na roça, pois, certa vez,  levou-nos para um piquenique onde encontraríamos com a escola da D. Arlete, nossa ex-professora, num lugar chamado Profunda, a uns dois ou três quilômetros da nossa escola. Colocou-nos em fila e tivemos que caminhar um atrás do outro como se fôssemos um pelotão do Exército. Não estávamos acostumados com fila de espécie alguma, pois na nossa escola nem desfile de Sete de Setembro havia. E, quando alguns alunos começaram a pedir pra sair da fila para irem ao banheiro, ou melhor, ao mato, ela disse que estávamos querendo comer a merenda antes do piquenique.
Não me lembro se passamos por alguém no caminho, ou se alguém perguntou onde estávamos indo. Mas, caso tenhamos passado, deve ter parecido estranho ver um grupo de crianças indo para um piquenique com aquelas caras tristes, como se fosse um pelotão de execução (ou melhor, a ser executado). A maioria de nós caminhava em passos pequenos, com as pernas apertadas uma contra a outra para evitar que o xixi saísse.
A certa altura, não aguentei mais, abri as pernas e simplesmente fiz xixi na calça. Tio Filadelfo, sendo apenas alguns anos mais velho do que eu, mas um defensor ferrenho dos sobrinhos, vasculhou todo o seu repertório de palavras feias para xingar a professora. "Feda..." Naquele momento, a professora se deu conta de que estava errada e não fez nada contra ele, simplesmente, mandou que o resto da turma, meninos para um lado e meninas para o outro,  fosse procurar um matinho para aliviar a bexiga. Para mim, entretanto, era tarde demais. Eu e minha irmã Etelvina estávamos usando vestidos novos, estampados de roxo e branco, com gola marinheiro, que minha mãe fizera para a ocasião. Eu estava com a calcinha molhada e fedendo a xixi.
Quando chegamos ao local do piquenique, Dona Arlete estava chegando com a turma dela. Traziam folhas de palmeiras nas mãos e cantavam "Salve lindo pendão da esperança...", o Hino `a Bandeira. Nós estávamos invejosos e ao mesmo tempo tristes pelo que tínhamos perdido, nossa querida Dona Arlete.
No caminho de volta, nossa professora resolveu passar por um caminho diferente, por dentro da mata do tio Gil no Tinguaciba, para tirar fotografias. Tio Filadelfo não quis acompanhá-la. Voltamos direto para casa. Não demorou muito e o ano letivo terminou e aquela professora retornou para Guaçuí e não voltou no ano seguinte. A maior parte da minha infância, eu tive raiva dela. Depois vim a entender que ela estava tendo tanta dificuldade de adaptação quanto nós. Era uma professora novata, que veio lecionar numa fazenda, tendo que comer uma comida com a qual provavelmente não estivesse acostumada, sofrendo saudades da família, dos amigos e da vida da cidade.
Fora a escola,  nossa maior responsabilidade como crianças,  além de pequenas obrigações como varrer o terreiro, que era dividido em partes para cada um (Etelvina e eu varríamos a parte de baixo do assoalho da casa, que era alto),  era brincar com os primos,  Edenilza, Dalva e Gerval e outras crianças da fazenda. Na matinha nos fundos da casa do tio Gil, agarrados aos cipós, voávamos, por alguns metros. Para a cozinhadinha oficial com supervisão de adultos, na casa vazia onde o Zico e a Biró haviam morado, macarrão com as rolinhas que o tio Filadelfo matava com atiradeira e pelotas de barro. E latas vazias para cozinhar ovinhos miniatura, de galinhas velhas, no fogãozinho clandestino de tijolos que meu pai não permitia, pois tinha medo de que nos queimássemos, mas que o tio Filadelfo fazia assim mesmo para nós, debaixo do assoalho alto da casa ou na beira do rio.
Descer de canoa de palmeira (a que dá coquinho) pasto abaixo, quebrar coquinhos no toco que servia de escada para o quarto do tio Jenus (do lado direito da casa e que dava para o terreiro), caçar casas de aranha no barranco, umas construções interessantes, uns tubos parecidos com papelão com tampa, e tirar cera de uma abelha pequenininha que fazia uns tuneizinhos amarelos, rendados, na porteira que dividia o terreiro do pasto... O broto de capim tinha um gostinho adocicado e também servia pra fazer assobio...
De vez em quando, eu e Etelvina dormíamos na casa do tio Gil. Edenilza e Dalva, Etelvina e eu, atravessadas numa cama de casal, tampávamos nossas cabeças com o cobertor e ficávamos imaginando coisas fascinantes que estávamos vendo. O quarto escuro e o cobertor faziam com que nossos olhos criassem cidades iluminadas e outras imagens que desejássemos. 
 
Na fazenda havia um cavalo castanho, do qual não me lembro o nome e um burro branco, o Soberbo, que puxava a carroça. Soberbo era forte, mas `as vezes empacava e empinava. Certa vez,  Etelvina e eu estávamos na carroça com o tio Joanilson, quando Soberbo teve uma de suas crises e a carroça virou. Etelvina quebrou a clavícula. Sentiu dores o dia todo. Meu pai não estava em casa e quando chegou, perguntou a ela onde estava doendo. Ela apontou a clavícula e ele, ao passar a mão, notou que o osso estava fora do lugar. Foi apertando forte até que ouviu um grande estalo. A princípio, pensou que havia feito algo errado e que acabara de quebrar-lhe a clavícula, mas imediatamente, ela parou de sentir dor. O osso havia voltado ao lugar.

Quase sempre havia visitas, colegas de internato dos tios, que vinham nas férias, o pastor ou um rapaz chamado Adevalde, que vinha pregar na congregação batista, que funcionava na sala da casa ligada `a venda do tio Gil.
Pastor Ambrósio (Antônio Ambrósio de Oliveira) era nosso favorito. Sempre pensei que foi ele quem celebrou o batismo do meu pai e da Tia Edil, na cachoeira, no mesmo dia. Mas pude ver pelo certificado de batismo do meu pai que foi um pastor chamado Enoque Balbino Lima, do qual me lembro do nome, mas não da pessoa. Eu ainda era pequena e chorei pois achei que ele os estava afogando. 
Pastor Ambrósio era muito bom e bastante liberal. Uma vez, deixou que experimentássemos o suco de uva que estava preparando para servir como vinho na ceia, normalmente oferecido somente para os adultos "membros de uma igreja batista da mesma fé e ordem”. Um idealista e grande benfeitor, fundou o Ginásio Rui Barbosa em Lajinha e o internato, para onde trazia também, muitos estudantes cujas famílias não podiam pagar pelos estudos. 
`As vezes, visitávamos a igreja sede, em Lajinha e lembro-me de ter tomado a primeira vitamina (de banana ou abacate, não me lembro), feita pela D. Aurizé, esposa do Pr. Ambrósio, uma iguaria e tanto para nós que nem conhecíamos liquidificador. Depois disto, passamos a fazer batida lá em casa. Amassávamos a fruta (abacate, por exemplo), misturávamos com  o leite e o açúcar, colocávamos numa garrafa e sacudíamos bastante. Para gelar, deixávamos a garrafa fechada a noite toda na caixa d’água que ficava no morrinho do lado de cima da casa. Válida a tentativa…
Casa da venda do tio Gil (anos mais tarde, 
quando já não existia a venda)
Adelina, já crescida, está na foto com
 o irmão Abel e os filhos
Irmão Altivo Maria, diretor de música, ensaiava o coral. “Jus... Jus... Justo és Senhor... nos teus santos caminhos...” (cada voz começando num momento diferente)… o melhor coral do mundo.
No Natal, o programa num palco construído do lado de fora da venda; paredes improvisadas feitas com lençóis brancos com flores naturais pregadas com alfinetes. Tia Ilca tocava o harmônio trazido da casa do vovô.  As “Belemitas”, na peça, íam visitar o menino Jesus…E “O sineiro da aldeia, todo alegre e festival, badala o sino, badala, anunciando o Natal...” eu declamava. A árvore de verdade, mas não um pinheiro, enfeitada com bolas de natal, sacos de papel crepom cheios de doce de leite, mamão ralado e outros. Meu primo Alcione, filho da tia Valmerinda, irmã do meu pai, quando era ainda bem pequeno, que não havia visto a preparação da árvore, pediu `a mãe dele que plantasse uma árvore que desse docinhos, achando que as sacolas de doces fôssem frutos naturais.
Nós acreditávamos em Papai Noel. Num Natal, quando ainda morávamos na casa amarela, minha irmã Etelvina descobriu nossos presentes escondidos, máquinas de costura de plástico, muitos dias antes do Natal. Meu pai disse que o Papai Noel tinha entregado a ele os presentes para que ele nos desse no Dia de Natal.
Mas no próximo Natal, já na casa do vovô, resolveu nos contar a verdade sobre o Papai Noel.
Estava escuro naquela noite e eu me lembro de que estávamos assentados no banco da cozinha da fazenda. Uma luz que não sei se era de um carro pequeno, ia passando lá longe, na estrada e ele nos disse que eram os faróis da caminhonete do Papai Noel. Nós já havíamos deixado nossos sapatos atrás da porta do quarto para que o Papai Noel deixasse nossos presentes. Enquanto ele nos distraía com a história da caminhonete do Papai Noel, minha mãe saiu pela porta da cozinha e entrou pela porta da sala, colocando os presentes nos sapatos. Quando as luzes da estrada sumiram, meu pai nos chamou para irmos ao quarto para ver se o Papai Noel já havia deixado os presentes. Estávamos impressionadas, e eu, particularmente, meio intrigada acerca da caminhonete do Papai Noel. Afinal, eu não vira o farol vindo em direção `a nossa casa. Mas pensava comigo "carro de Papai Noel" é misterioso mesmo... Ficamos eufóricas com os presentes e ainda estávamos comparando o que havíamos ganhado, quando ele resolveu nos contar o truque usado pela minha mãe.
Aliás, na celebração de Natal feita no palco do lado de fora da venda, tio Joanilson vestiu-se de Papai Noel e as crianças cantavam uma musiquinha assim:" Sai daqui seu bobo, velho impertinente, fazendo vergonha no meio da gente."

Pessoas como o irmão Januário e Tatico, vinham de longe com suas famílias, irmão Januário da Fortaleza e irmão Tatico de Criciúma, `as vezes descalço, com as mãos calejadas, para congregar conosco. Ainda posso sentir o cheiro de suor e perfume que exalava dos cabelos da Terezinha, uma das filhas do irmão Januário, que tinha longas e grossas tranças. Depois do culto, íam para a casa do vovô para comer, conversar, jogar vôlei, birosca, pular maré, brincar de bilboquê, pião, perna-de-pau e outras brincadeiras.
Numa época, meus tios  amarraram um laço numa árvore que ficava num barranco mais alto na beira do rio, puseram um estribo na ponta do laço; adultos e crianças usavam o balanço para atravessar o rio e saltar na outra margem no areião.
Num dia, a tia Elma estava usando salto alto e o sapato dela ficou agarrado no estribo. Foi e voltou e o balanço parou no meio do rio numa parte onde o rio era bem fundo. Um custo para tirá-la de lá, mas ela era calma e não se apavorou.
De tempos em tempos, havia uma Escola Bíblica de Férias na congregação, dirigida pela Cisina, Vasti ou outra pessoa da igreja de Lajinha. Tempo de ouvir histórias de flanelógrafo, aprender novos corinhos e versículos da Bíblia. "Estou seguindo a Jesus Cristo... Deste caminho, eu não desisto... Atrás não volto, não volto mais". E marchar em volta do terreirão de cimento, cantando “Mesmo que eu não marche na Infantaria, nem na Cavalaria, nem na Artilharia...”, usando nossos chapeuzinhos com as letras EPB (Escola Popular Batista) como eram chamadas as Escolas Bíblicas de Férias nas igrejas batistas da época. Uma das nossas classes reunia-se debaixo do pé de manga no terreiro da venda; uma grande tora servia de banco para assentar.
Muitas vezes havia culto nas casas dos irmãos Tatico, na Criciúma,  e Januário, na Fortaleza. íamos a pé ou a cavalo, `as vezes, voltávamos com noite escura ou `a luz da lua e das estrelas. 

Nas férias, sempre havia algum colega de internato do tio Joassi ou tio Joanilson  passando dias na fazenda. E as sociais no terreiro da fazenda eram uma oportunidade  para a moçada socializar e flertar e se deliciar com “Olha o macaco na roda” ou “Locomotiva deu apito dentro do meu coração, ora vamos pra estação... funda lata...” as brincadeiras dirigidas pelo Biguito (Altair), filho do Seu Alvino Heringer, sobrinho do Vovô Américo e dono da fazenda vizinha.
Uma outra coisa da qual eu gostava era de ir a Laranja da Terra, que não chegava a ser nem uma vila, `a pracinha, na Fazenda do tio Luizinho,  irmão do Vovô Américo, o centro do córrego, onde havia o campo, com times de futebol de salão e vôlei, muito bons. Minhas tias gostavam de ver os primos jogando e sempre comentavam a respeito dos mais bonitos, que interessavam a elas. Na pracinha, a Igreja Presbiteriana, o consultório de dentista do Jerônimo Werner, a venda do Dionésio e o cinema do Ademar, os dois últimos filhos do tio Luizinho. Este cinema, com cadeiras dobráveis, grande novidade para quem nunca tinha ido ao cinema, não durou muito tempo, mas foi onde assisti ao meu primeiro filme. A farmácia do Seu Pedro Werner era mais acima, perto da tia Valmira e da Fazenda Flor da Mata, da tia Alzira, viúva do tio Lindolfo, irmão do vovô Américo também.
Aliás, estávamos cercados de parentes por todos os lados. No Tinguaciba morava a Eli, do Zé Braga, filha do tio Elói, que visitávamos de vez em quando. 
Na Fazenda do Seu Alvino, cercada de casas dos filhos, Airle e Olívia, Adenir e Oziel, Abgair (Bêga) e Valderez, Altair (Biguito) e Maria José (tia Zeca) e Adair (tio Chico) e Lurdes, que moravam do lado da laje do rio. 
Airle foi o primeiro a ter um automóvel em Laranja da Terra. Meu pai tinha um caminhão F6, tio Gil e tio Afonso tinham jipes de capota de aço. Mas no dia em que o Airle chegou na casa do vovô Américo com a família num automóvel, fiquei impressionada... Antes ele tinha uma motocicleta, que também era novidade... 

Certa vez, depois que o tio João mudou-se para Belo Horizonte e gravou um LP daqueles grandes e pesados,  fomos `a casa do tio Aurino e tia Ambrosina, cunhado e irmã do Vovô Américo, que tinham uma vitrola,  para ouvir o disco. Lembro-me de que o primeiro hino da lista era "O Senhor é o meu pastor..." e começava lento, suave. Mas quando chegava na parte "...Ainda que eu ande no vale da sombra da morte, não temerei...", ficava forte, tão forte, mais forte, pela voz forte de tenor do tio João.
Estávamos mais acostumados a ir `a casa do tio Eloi, do tio Brilhantino, tia Alzira, tio Luizinho (na casa do tio Afonso fomos poucas vezes) do que no tio Aurino. Mas acabamos passando o dia por lá, conversando, comendo e chupando jabuticaba.  Tio Aurino  havia comprado uma máquina de lavar roupas e com o maior entusiasmo, mostrou-nos  como funcionava. Colocou uma toalha para lavar e quando terminou a operação, deixou-nos tocar na toalha para ver como estava praticamente seca.


Casa de veraneio (em construção) do tio Aurino (Guarapari)
Meu pai gostava muito de visitar e sempre estávamos visitando os tios avós, primos e conhecidos. Na fazenda do tio Elói havia uma coisa que me fascinava. A pista de avião onde o Adiel, filho dele e o Magalhães, genro do tio Aurino pousavam os seus teco-tecos. Tia Edil contava que, na primeira vez que o Adiel foi a Laranja da Terra com o avião, para a inauguração do campo, tio  Elói deu uma festa que durou todo o dia, para todos os que quisessem, com mesas e mais mesas de comida enfileiradas no terreiro. E que o Adiel dava "uma voltinha" de avião com aqueles que tinham coragem para tal. 
Rejane, neta do tio Aurino, diz que o PP-RUA era do tio Aurino e o Magalhães pilotava. O PP-DIB do Adiel. O pai dela, Adilson, contava que eles desciam na praia do Riacho (em Guarapari) e rebocavam os aviões até em casa (tio Aurino e tio Elói tinham casas de veraneio lá). O PP RUA ainda está em uso e bem bonito, em Cabo Frio, R.J, para onde foi vendido.
Tio Jenus uma vez nos deu um susto muito grande. Estava dirigindo o caminhão, passando na curva da estrada logo depois do encontro do Córrego Laranja da Terra com o Fama, e o caminhão tombou uns dez metros até parar na laje de pedra, que cobria a maior parte do córrego naquela altura. Ouvimos um barulho enorme e saímos correndo para ver o que tinha acontecido. O caminhão estava todo estragado, mas, milagrosamente, tio Jenus tinha apenas alguns arranhões.
Minha mãe sempre reclamou que quando chegou o momento dos meus avós escolherem entre ela e o tio Jenus para mandar para o internato, para continuar os estudos, (em Laranja da Terra só tinha até `a quarta série), eles escolheram o tio Jenus. Mandar uma mulher para estudar, seus irmãos comentavam, poderia ser um desperdício de dinheiro, pois ela se casaria, teria que criar os filhos e não teria uma carreira. Então o tio Jenus terminou o curso científico e não sei ao certo se fez o vestibular para o curso superior.  Sei que tinha o sonho de ser médico, e teve uma época em que consideraram mandá-lo para Portugal ou outro país da América Latina para estudar, mas nunca chegou a ir. Ao invés disto, voltou para casa, fez muitas inovações na fazenda e teve o acidente com o caminhão.

Ele era bonitão, alto e magro, usava óculos com aros de metal redondos e finos, falava muito bem, um rapaz muito educado. Gostava de comer abacate sem açúcar e eu não podia entender como alguém poderia gostar de uma coisa sem sabor nenhum, da mesma forma que não sabia como alguns gostavam de coisas amargas como jiló e jurubeba, que hoje amo.
Lembro-me de que tio Jenus me chamava de “a macia do tio”, por minha pele sedosa, e ele gostava de passar a barba no meu rosto.
Algum tempo depois, ele mudou-se para Governador Valadares, onde administrava o depósito de madeiras processadas na serraria dos tios Joel e Jeronil em Itabira. Também tinha um comércio separado, só dele, de cabiúna e outras madeiras de lei. Prosperou muito também. Era muito bom com cálculos. Dizem que olhava uma tora e podia supor as suas medidas, fazer as operações na cabeça e os resultados seriam os mesmos, quando mediam oficialmente a tora, usando a trena. Tenho certeza de que os estudos o ajudaram no seu sucesso pessoal. Mas, minha mãe dizia que, se ela tivesse ido para o internato, pelo menos teriam tido uma professora na fazenda. A casa amarela em que moramos fora construída pelo tio Joel quando estava para se casar, com uma sala bem grande, que ele tinha em mente transformar em sala de aula algum dia.

Minha irmã Etelvina era muito agarrada com minha mãe, e quando meu pai lotava o  F 6  azul de gente, para ir `as festas no Beira Rio, Lajinha, Chalé ou outro lugar,  ía na cabina com minha mãe. Mas  eu ía na carroceria com o pessoal e nunca perdia a oportunidade de sair, mesmo que minha mãe ou pai não fossem, com minhas tias e tios.
Lembro-me de uma vez em que o tio Jenus foi buscar a tia Edil no internato em Alto Jequitibá e me levou com ele. Paramos em Manhumirim e ele comprou um par de sapatos de plástico transparente com estrelinhas, para mim. Penso que nunca calcei sapatos mais bonitos.


Tio Afonso, irmão do vovô Américo, cuja primeira esposa havia falecido, casara-se em segundas núpcias com D. Nila, que tinha um filho chamado Nelson, cuja esposa Terezinha foi professora em Laranja da Terra. Tinham um apartamento mobiliado em Belo Horizonte e, certa vez, uns ladrões chegaram lá com um bilhete, supostamente do tio Afonso, para os tomadores de conta, pedindo que abrissem o apartamento, porque eles estavam se mudando. Os ladrões lotaram os caminhões e levaram tudo, com a ajuda do casal, que ainda teve o cuidado de embalar a mudança direitinho para não quebrar nada.


Tia Ilca e tio Cincinato (eu fui a daminha)


Tia Ilca começou a namorar um rapaz que veio de Valadares e estava trabalhando de pedreiro na casa do tio Afonso. Certo dia, tio Afonso, chegou na casa do vovô para conversar com ele um assunto confidencial. Estava lá para avisar que o rapaz havia tido umas encrencas lá em Valadares e estava em Laranja da Terra para se esconder dos seus desafetos. D. Nila, a mulher do tio Afonso, era amiga de um engenheiro e construtor de Valadares, Dr. José Loyola, que o havia recomendado como bom profissional. Cincinato trabalhara para ele como especialista em acabamentos. Realmente, trabalhava muito bem e fez serviços para o tio Nolmerindo, tio Osvaldo e várias outras pessoas em Laranja da Terra.
Vovô ficou meio desapontado, mas deixou a decisão para a  tia Ilca, que se decidiu por se casar assim mesmo. 
Certo dia, o namorado dela, Cincinato, ficou lá na casa do vovô até mais tarde e a Etelvina, com o seu expediente natural disse para ele: "Ô Cincinato, já tá na hora de você ir embora, está ficando escuro..."
Eu fui a dama de honra do casamento deles. Meu vestido era igual ao da noiva, mas, na cabeça, ela usava uma grinalda de flores  de cetim e o véu e eu apenas uma coroa de florzinhas, também de cetim.  Nas mãos, ela levava um buquê e eu uma flor, do mesmo material da grinalda e buquê, com as alianças. Um bonito bolo, docinhos colocados em forminhas de papel em forma de flor, bastante chique para um casamento na roça. Leitoa assada, recheada com farofa e enfeitada com azeitonas fincadas em palitos.

O enxoval da tia Ilca também foi dos melhores. As filhas da D. Dalziza, no Tinguaciba bordavam a todo vapor e lembro-me de passarmos na Pedra Torta, lá no Areado, onde moravam bordadeiras que estavam trabalhando para ela também. Toalhas, lençóis, etc, com bordado aberto, cheio e matiz.
Não me lembro bem da cerimônia, mas acho que foi realizada no terreiro, pois me lembro de ter deixado as alianças cairem na escada de cimento da frente da casa, uma escada de uns dez degraus, com uma mureta que usávamos como escorregador.
O  fotógrafo contratado, Seu Bramantino Segal, de Lajinha, não apareceu; havia chovido muito nos dias antes do casamento. Desta forma, não houve a tradicional fotografia dos noivos em frente ao pé de murta no final do terreiro, como nos casamentos da minha mãe e tia Elzina. Poucos dias depois, fomos a Lajinha no F6 do meu pai para tirar as fotos no estúdio do Foto Bramante, onde estivemos em outras ocasiões também. Seu Bramantino arrumava a gente em frente `a grande cortina, depois se escondia atrás de um pano preto da máquina de tripé, para tirar a foto. Tia Ilca era muito elegante e a foto ficou muito boa, apesar de todos, até eu, estarmos sérios. Parece que as pessoas não podiam rir para as fotos.
No caminhão, de volta para casa, começou a chover. Tia Ilca e minha mãe estavam na cabina com o motorista, meu pai. Eu só gostava de andar na carroceria com o resto do pessoal. Tio Cincinato, o noivo, estendeu uma lona para nos proteger da chuva, improvisando uma tenda. Zico, o empregado do meu pai que me resgatou quando caí da pinguela, e a filha dele, Lurdes, estavam no caminhão também. Zico estava meio embriagado e, de vez em quando perguntava pra ela: "Cê vai bem aí, Lurdinha?" Meu pai, muito crítico, aprendeu esta frase e, toda vez que queria saber se estávamos bem, perguntava "Cê vai bem aí, Lurdinha?"
Tia Ilca e tio Cincinato íam morar no Norte, no Córrego Azul, onde o vovô Américo havia comprado um sítio. Vários irmãos dela já moravam em Itabira, tia Elzina, tio Joel, tio Jeronil, além do Vovô Fildelfo e tio Reginaldo, pai e irmão da vovó Leonina, que foram os primeiros da família a irem para lá.
Eu gostava muito da tia Ilca e do tio Cincinato, e dizia que iria com eles. Tio Cincinato havia me dado uma foto três por quatro dele, que guardo até hoje, mais de cinquenta anos depois (tio Circinado ficou viúvo e depois que eu e outros primos, incluindo o filho dele Gladstone, já morávamos em uma república da família em Boston, ele veio morar conosco. Ele mesmo me contou os detalhes da história para colocar nas minhas memórias. Casou-se novamente com a nossa vizinha do andar de cima, Zenir Eller).
Tia Ilca tocava o hamônio e eu gostava de acompanhá-la e quando soube que ela não iria levar o harmônio consigo, achei um absurdo. Tia Elma e tio João também tocavam, mas eu sempre associei o instrumento com a tia Ilca.
Menos de um ano e tia Ilca voltou, não exatamente para visitar, mas para ter a Gláucia. Lembro-me das batas de grávida que usava, com saias, uma moda muito bonita. Tia Ilca era chique por natureza.
Também das sopas de galinha, feitas com farinha de milho por semanas a fio, que eram a norma para as mulheres que davam `a luz, na época, mas que toda a família comia. Hum... delícia...


                                                 O Pito Aceso

Durante o dia,  com um pouco de esforço, podia-se ver a pequena casa de barro batido no topo da montanha, que ficava além do rio, ao longe, do lado da cozinha da fazenda. Mas era `a noite, quando tudo estava calmo, com a luz fraca do gerador, que podíamos notar melhor a habitação lá em cima, ou melhor, o ponto brilhante no meio da escuridão.
Tocado pela água do Rio Fama, que vinha através do rego feito com paredes de cimento, o gerador acionava o moinho perto da venda do tio Gil, o ralador de mandioca, o despolpador de café, além de acender as lâmpadas da fazenda, que eram pouco mais vermelhas que um tomate maduro.
Ouvindo os grilos e sapos, observando os vagalumes na escuridão e assentados nos longos bancos de madeira, através das janelas, podíamos ver aquela pequena luz lá longe no alto, talvez de uma fogueira ou de um fogão `a lenha, ou mesmo de uma lamparina de querozene mas que parecia tão pequena como o lume de um cachimbo, razão pela qual chamavam aquele lugar de "Pito Aceso".
De certa forma, a fazenda não estava tão parada assim. Havia a passação de roupas, o culto doméstico, uma hora inteira de notícias no rádio e os comentários das notícias. Num país chamado Estados Unidos, havia um carro para cada pessoa e eu, que não tinha nenhuma idéia de que existisse a expressão "per capita", matutava com meus botões que aquilo era uma tremenda mentira. Falavam de um tal de Fidel Castro, num país chamado Cuba e do Comunismo trazido da Rússia, onde todos tinham que negar a existência de Deus e muitas crianças eram retiradas das famílias para serem educadas pelo governo.  Olhos arregalados, eu pensava em como poderia existir tanta crueldade.  E alguns cientistas afirmavam que o homem descendia do macaco... Comentava-se também sobre o "moto-contínuo", um motor cujo combustível era apenas água, idéia de um tal de Sebastião, que nunca conheci. Nunca mais ouvi do "moto-contínuo", mas tenho a esperança de que algum Sebastião ou Manuel ou simplesmente "Mr. Inventor" ainda o possa descobrir.
Entre os visitantes frequentes, Seu Vertulino Pereira de Souza, velho simpático e elegante, viúvo de uma prima da Vovó Leonina, Zulmira,`as vezes, vinha sozinho ou com o Seu Joaquim Moreira. Só que uma vez, estava conversando com meu pai sobre umas coisas que não pude ouvir muito bem, mas que incluíam pessoas atiradas aos leões... Perdi o sono naquela noite. Penso que deviam ser histórias do tempo do Império Romano.
Dona Madalena Forte, que pernoitava de tempos em tempos, era uma senhora negra, que diziam havia sido escrava quando bem jovem, mas se casara com um homem branco e fora alforriada. Estava muito idosa e com a mente confusa. Andava de fazenda em fazenda, comia e dormia em uma e ia para a outra, num círculo contínuo. Num dia de bastante calor, eu estava usando shorts, e como tenho uma pinta preta na parte traseira da coxa esquerda, tio Joassi disse que aquela pinta era um beijo que a Dona Madalena Forte havia dado na minha perna. Por muito tempo, me recusei a usar shorts.
Certa vez, na hora do jantar, quando Dona Madalena estava colocando comida no prato, havia uma panela com uma coisa branca e cremosa no canto do fogão, e ela pensou que fosse sopa de batatinha. Tia Elma lhe disse que era gordura de porco talhada, mas ela se recusou a acreditar e colocou uma boa quantidade da "sopa de batatinha" no prato.  "Eu não sei ler nem escrever, mas ninguém me passa na farinha", disse. Quando começou a comer, percebeu que tia Elma tinha dito a verdade e teve que jogar toda a comida fora e servir outro prato.
Ainda no meu tempo, antes do Pastor Ambrósio, o Pastor Pedrosa, um português, vinha de Manhumirim, de ônibus, mas minha mãe contava que,  quando ainda não existia a linha de ônibus, vinha a cavalo e foi ele quem casou os meus pais. Falavam muito também, de uma tal de Missueste (Miss. West), uma missionária americana que ensinou a tia Elzina a tecer "frivolité", um trabalho muito delicado feito com "navetes" e também a fazer ternos para homens. Falava-se muito também no Pr. Jackson, um missionário americano e sua esposa D. Paulina, que visitavam a congregação.
 
Não era muito comum fazermos fogueiras na fazenda, mas, numa época lembro-me de que o pai da Ilda, a empregada, Seu Domingos, estava visitando, e fazia fogueiras no altinho, atrás da tulha de guardar palha de café, perto do rachador de lenha. Estava frio e, em volta da fogueira, reuniam-se empregados e o pessoal da fazenda, para contar anedotas e piadas e cantar cantigas acompanhados do violão do Seu Domingos.
Apesar do número de pessoas e visitantes, para mim, as noites na fazenda tinham um ar de nostalgia.  Era melancólico o suficiente cá embaixo, que eu olhava o "Pito Aceso" e imaginava como seria lá. Quantas pessoas viveriam naquela casinha, seria uma família, apenas um casal, ou uma só pessoa? Será que essa pessoa ou pessoas desciam daquela montanha frequentemente? Tinham um rádio como nós? Penso que eu não imaginava que, fosse quem fosse que morasse lá, naquela casinha de pau-a-pique, essa pessoa ou pessoas, deveriam trabalhar tão duro na roça que, lá pelas oito da noite, estariam tão cansadas que iriam dormir cedo e nem teriam tempo de curtir a noite. Ou, talvez, estivessem reunidos em volta de uma fogueira contando casos...
Na verdade nunca descobri quem morava no "Pito Aceso". Minha mãe me disse  que as terras pertenciam `a Fazenda do Seu Alvino, sobrinho do vovô, que tinha uma serraria na fazenda também, mas que funcionava muito pouco pois a madeira da região já estava escassa.
Houve um tempo em que uma mulher que morava no Pito aceso,  era lavadeira da minha avó, que lá nascia uma água muito boa. Perguntei-lhe quem levava a roupa da fazenda pra lá, mas ela não se lembrava se os meus tios levavam ou se a mulher buscava. Se buscava, penso que devia ser numa carroça. E uma carroça bem grande, puxada por um animal bem forte...

                                                    Rute

Nunca cheguei a saber o verdadeiro sobrenome da família "Pescadô", uma vez que pescador  era um apelido dado a eles por terem o hábito de pescar, não pescaria profissional, apenas uns lambarizinhos ou acarás (que chamamos apenas carás), no córrego, perto da casa deles. Eram uma família numerosa, que trabalhava para o meu pai, isto se trabalho pudesse ser uma metáfora para pescaria, pois estavam quase todo o tempo pescando, além de tomarem umas pingas. Um casal de idosos, três filhos casados e um punhado de crianças sujas e malnutridas, amontoados em duas casas no terreiro uma da outra.
Havia uma garota nesta família cujo nome era Tereza e minha mãe resolveu adotá-la. A família parecia estar contente de vê-la morando na casa grande da fazenda. Minha mãe e tia Edil apararam e pentearam os cabelos dela, deram-lhe um bom banho, cortaram-lhe as unhas, fizeram roupas novas para ela, compraram-lhe sapatos. Parecia que havia se transformado em outra pessoa. Tanto que a tia Edil sugeriu que lhe trocassem o nome. Decidiram-se por Rute, com o qual a menina não só concordou, mas passou a responder prontamente. A família passou a chamá-la de Rute, também.
Igreja Presbiteriana de Laranja da Terra
Estava indo muito bem, aprendendo novos hábitos higiênicos e fazendo algumas pequenas obrigações na casa.
Mas nem tudo muda de um instante para o outro.
Era o dia da inauguração do novo templo da Igreja Presbiteriana de Laranja da Terra, na pracinha, ou seja, na cabeceira do Córrego Laranja da Terra, onde havia o povoado. 
Quando chegaram `a igreja, minha mãe pegou a Rute para ajudá-la a descer da carroceria do caminhão. Meu pai, que estava em baixo, esperando para pegá-la, fez a maior careta, deixando minha mãe intrigada. Meu pai cochichou no ouvido da minha mãe... A garota não tinha costume de usar roupa de baixo e, apesar do vestido novo, não havia colocado a calcinha. O vestido era compridinho e como minha mãe não havia trazido  roupas extras para a menina, ela  continuou como estava.
Pouco depois, a família foi assistir a um culto na casa do vovô e a irmã dela roubou carne seca. Mas, na hora de ir embora, não pode levar e escondeu debaixo do assoalho.
No dia seguinte, o cachorro achou a carne seca. A Rute, que sabia do fato, contou que a irmã tinha pegado.
Rute não ficou muito tempo lá em casa, nem conservou o nome, depois que a família a levou de volta para a casa deles. Mudaram-se e nunca mais ouvi falar dos "Pescadô".
Mas antes de se mudarem, outro episódio aconteceu. Certo dia, estava amanhecendo, quando dois irmãos  Pescadô chegaram na casa do  vovô chamando "Sô Amerco!!! Sô Amerco!!!".  
Vovô acordou assustado e consequentemente todos os da casa, para verem os "Pescadô" segurando um homem que morava na vizinhança, alto e forte, com as mãos para trás, a boca sangrando pelos socos que recebera.
"Esse safado tava robano galinha no terrero do Sô Gil." 
Mostraram uma corda de pião e uma sacolinha de milho, que, segundo eles, o homem estava usando para pegar as galinhas. O homem era J.D., cuja primeira letra, o J, é a primeira letra do seu nome e o D, a primeira letra do apelido, que significa forte e lhe fora dado pelo fato de ter tanta força, que parecia poder desdobrar qualquer um em queda de braço. Mas, tal  força, parecia não coincidir com sua capacidade mental limitada. Por isto, além de trabalhar, por vezes roubava.  
Ficamos todos extremamente chocados com a cena. Vovô Américo simplesmente pediu que largassem o homem, não sem antes aconselhá-lo a que não roubasse mais. Nunca soube que o fizesse depois disto.
 
Mas houve uma outra vez em que passamos susto parecido. Foi quando o Seu Romildo, doente mental, que de vez em quando ficava internado em Barbacena, chegou na casa do vovô, desta vez durante o dia, também chamando "Sô Amerco". Por muitas noites, eu tive pesadelos e ía pé ante pé, deitar nos pés da cama dos meus pais. Aliás, eu tinha pesadelos também com cachorros doidos, que, de vez em quando apareciam por lá. Penso que ainda não existia a vacina anti rábica e a maneira que testavam para ver se o cachorro estava doido era jogar água no animal. Se estivesse hidrófobo (com medo de água, literalmente), cairia o queixo.
Meu avô contava que um sobrinho dele tinha um cachorro que ficou doido e mordeu uma menina que morava na fazenda dele. A menina teve que ser morta com uma injeção. Depois disto, ele tomou pavor de cachorros e todos os sem dono que apareciam por lá, ele mandava matar e plantar um pé de café por cima da cova. Fez uma "lavoura de cachorros".
De vez em quando, quem passava na fazenda, ou víamos na estrada, era o João Bico, um rapaz de lábios grandes e prominentes, que morava na casa do Alberto Heringer, filho do tio Lindolfo Heringer, muito bom e caridoso. João Bico também tinha problemas mentais e andava empurrando uma carrocinha. Tinha muito medo da "captura", nome que davam `a polícia na época.
Outro que, para mim, se tornou um personagem legendário, foi o Seu Sinfrônio. Perdera uma mão quando soltava um foguete e usava uma capinha de couro para proteger o cotoco do braço. O modo como meu pai se referia a ele para nos advertir dos perigos de soltar foguetes, fazia-nos pensar nele, não como um ser humano normal, exceto pela falta da mão, mas como um símbolo da má sorte, originada na imprudência. Para mim, não importava se ele tinha uma outra mão, dois pés, dois olhos, dois braços, uma cabeça... Nem se era bom ou mal, se tinha esposa ou filhos, se trabalhava, mesmo tendo apenas uma mão. Via-o apenas como o símbolo da imprudência, mesmo que o seu ato tivesse ocorrido muitos anos atrás e já tivesse amadurecido tanto que nem soltasse mais foguetes. Ou, se o fizesse, tomasse bastante cuidado.


                                             Dia de Finados


Dia 2 de novembro, o "Dia de Finados", era um dia de emoções controversas para mim. A excitação começava logo cedo, quando colhíamos flores, fazíamos os buquês, tomávamos banho e trocávamos de roupa. Depois caminhávamos a pé mais ou menos um quilômetro e meio até o cemitério na Fazenda do Seu Alvino, sobrinho do Vovô Américo. Era excitante ouvir as histórias de parentes que tinham vivido num outro tempo, muito tempo atrás, de quem talvez nunca teríamos ouvido se não fosse pelo Dia de Finados.
Por outro lado, era triste lembrar os que haviam morrido recentemente, como a Vovó Leonina. Vovó Etelvina, mãe do meu pai e o Tio Osvaldo, irmão, haviam falecido também, todos dois de câncer no intestino, dois dias de diferença um do outro. Sentia tristeza por nós e por todos os que tinham saudades deles, especialmente do tio Filadelfo, que perdera a mãe, vovó Leonina, com apenas sete anos de idade.
O cemitério estaria capinado e as poucas catacumbas pintadas de novo. Seu Altivo Maria, o regente do coral da congregação, que morava perto do cemitério, recolhia dinheiro dos fazendeiros para capinar o cemitério e pintar as catacumbas dos parentes daqueles que desejassem.
A maior parte das sepulturas eram apenas montes de terra como se fossem barrigas grávidas, quase todas com uma cruz de madeira na cabeceira, algumas com o nome e a data de nascimento e morte da pessoa ali sepultada.
Havia duas catacumbas de cimento, grandes, bastante antigas, uma no alto do lado esquerdo do cemitério era a do Tio Lindolfo, irmão do Vovô Américo; a outra do lado direito, do Vovô Alvim, pai do meu pai, que morrera muito antes de eu nascer. Vovó Etelvina fora enterrada na mesma catacumba, a coroa de flores metálica, que ainda era nova, enfeitava a catacumba.
Havia apenas uma catacumba de azulejos pretos, a do tio Osvaldo, que tinha também uma coroa de flores metálica igual `a da vovó. Tia Nair, a viúva dele, já deveria ter vindo ao cemitério, pois a catacumba dele estava cheia de flores, os azulejos bem lavados. Tia Nair, como sempre, tinha a casa mais limpa e o jardim mais bonito da região.
No mesmo ano em que Vovó Etelvina e tio Osvaldo morreram de câncer, perdemos uma prima, a Maria Etelvina, filha do tio Astrogildo, de câncer no olho. Lembro-me de vê-la com o olho arroxeado e inchado, chorando no colo do pai dela. Interessante é que, se sua sepultura estava ou não naquele cemitério, não sei. Talvez tivesse sido enterrada em outro cemitério. 
Do lado esquerdo da sepultura do tio Osvaldo, ficava a do Clair, filho da tia Valmira, irmã do meu pai, que morrera com doze anos num acidente de carro.  Foi um acontecimento muito triste. Ele e os irmãos haviam acabado de chegar do internato em Alto Jequitibá.
Mais abaixo, no centro do cemitério, três catacumbas caiadas de branco, uma grande no centro, da Vovó Leonina e duas pequenas dos lados, dos filhos do tio Gil que morreram de doenças infantis. Gediel, o garoto, era mais ou menos da idade da Etelvina, minha irmã; Edinéia, a menina, um pouco mais nova.
`As vezes, eu ficava intrigada porque quase todos os tios e tias haviam perdido algum filho para o sarampo ou verminoses e a minha mãe e meu pai, não. Nunca tiveram um filho que nascera morto ou um aborto, o que parecia a história de quase todas as casas na época. Além de terem uma família pequena, apenas três garotas, meu pai, que vivera no Rio de Janeiro por muitos anos, tinha seus próprios meios anticoncepcionais (depois fiquei sabendo que usavam tabela) e era muito preocupado com a saúde. Ele nos tratava com homeopatia, remédios sem gosto de nada, apenas umas gotinhas parecidas com álcool numa colher de água. Acônito, briônia, beladona, ipecacuanha.  Também estava alerta para qualquer sinal de febre alta ou "ataque de bichas", como se chamava quando as lombrigas atacavam. Certa vez, um filho de um tio já estava ficando roxo, se asfixiando pois as lombrigas haviam se juntado na garganta dele. Meu pai pegou uma colher, abriu `a força a sua boca que estava travada e colocou uma solução de hortelã amassada garganta abaixo, salvando-lhe a vida.
Tio Gil mandara cortar pedras de mármore com os nomes gravados para colocar sobre as catacumbas da vovó Leonina, do Gediel e da Edinéia, mas as pedras ficaram muito grandes para as catacumbas e continuavam por muito tempo atrás de um móvel na casa dele.
Andando de cima abaixo no cemitério, colocando flores sobre as sepulturas, ouvindo histórias dos mortos e da causa das mortes, chorando por eles, me fazia sentir bem. Penso que a tendência masoquista, a atração pelo lado dramático da vida, o gosto pela tragédia, comuns `a natureza humana, me faziam voltar para casa uma criança feliz, ansiosa para que chegasse o próximo Dia de Finados para voltar ao cemitério.



                                          Viagem a Belo Horizonte


Tio João havia se mudado para Belo Horizonte para continuar os estudos no Colégio Batista. Acabou comprando uma pensão e levou a tia Elma e a Maria Veríssimo para trabalhar lá. 
Maria Veríssimo havia sido empregada da vovó Leonina e babá do tio João, e mesmo depois que se casara com o Zé Rita (José, filho de uma mulher chamada Rita), bem mais novo do que ela, e alcoólatra,  continuara morando na fazenda e trabalhando para a vovó. Por vezes, quando Maria se cansava dos abusos, separava-se dele e vinha morar dentro da casa do vovô novamente. Ela também gostava de uma pinga, mas nunca bebia para ficar bêbada.
Numa destas épocas em que estavam aparentemente separados de vez, tio João a levou para trabalhar na pensão e mesmo depois de ter vendido o negócio e entrado para o DI (Departamento de Instrução) da Polícia Militar, ela continuou trabalhando para ele, no apartamento que dividia com colegas. Maria adorava uniformes militares, especialmente os da Banda da Polícia Militar, que ela chamava de "musgueiros" (fazedores da música). Maria cozinhava muito bem, fazia uma carne assada deliciosa e era bastante vaidosa, tendo o cuidado de ir ao salão de vez em quando alisar os cabelos.
Na época em que tio João tinha a pensão, meu pai resolveu nos levar para conhecer Belo Horizonte, mais ou menos uns trezentos e cinquenta quilômetros de distância. Pegamos o ônibus para Manhumirim e o trem da Leopoldina para Manhuaçu, uma novidade, pois era a primeira vez que andávamos de trem. Ficamos hospedados no Hotel Zapalá. Etelvina, muito curiosa, estava mexendo nos arranjos de flores e foi repreendida pela dona do hotel.  
`A noite, fomos visitar o tio Quinquim e a tia Lia, irmão e cunhada da vovó Etelvina, mãe do meu pai, que moravam na Rua Monsenhor Gonzalez, em Manhuaçu. (Na volta de Belo Horizonte, lembro-me de que visitamos o tio Luciano e  a tia Maria, irmão e cunhada do vovô Américo em Manhuaçu também).
No dia seguinte, pegamos o ônibus para Belo Horizonte. Estávamos acostumadas a viajar mais ou menos a mesma distância quando íamos visitar os tios que moravam no Norte, em Itabira (mais tarde Itabirinha, para diferenciar de Itabira do Mato Dentro) mas era por estradas poeirentas e pequenas cidades. 
Vestido da Clarinda com bordado da cantiga do Sabiá
Ficar hospedados numa pensão era uma grande novidade. Sentíamo-nos importantes tendo o café da manhã com outros hóspedes na sala de jantar cheia de mesas bem arranjadas, cobertas com toalhas, com a cesta de pães, pequenas mantegueiras de vidro redondas e outras amenidades, sem perder no conforto de estar em casa. Afinal, a pensão era do tio João e ele nos paparicava o tempo todo. Tio João tinha um cachorro chamado Tiquinho, que era o guardião da pensão.


Minha irmã mais nova, Clarinda, com uns dois anos na época, tinha um lindo vestido com ilustração e letra de uma cantiga, bordados em matiz em volta da saia do vestido. Lembro-me de que ela ficava uma fera quando, até na rua,  as pessoas paravam para apreciar o fino trabalho de arte e cantar em volta do vestido "Sabiá lá na gaiola, fez um buraquinho... Voou..." a história de um passarinho que consegue fazer um buraquinho na gaiola e voar até um abacateiro, deixando a sua dona, uma garota, chorando e implorando "Vem cá, sabiá, vem cá."
Meu pai se tornou amigo do sírio-libanês que havia vendido a pensão para o tio João, o Seu Tufi, e foi na casa dele que fomos apresentadas pela primeira vez a um caixote falante com tela arredondada, a televisão. Minha irmã Etelvina, não podendo conter a curiosidade, colocou a mão na tela e foi olhar lá atrás da televisão para ver de onde saiam aquelas imagens.
Uma coisa que me intrigava, mas que não perguntei pra ninguém, era como os sinais de trânsito sabiam quando vinham carros de um lado ou do outro para ficarem verdes ou vermelhos. Na minha cabeça, tinha a impressão de que o sinal obedecia ao fluxo de carros e não o oposto.
Adicionar legenda
Eu havia acabado de aprender a ler e estava muito entusiasmada com isto. Certo dia, ao ver um ônibus com a placa Formiga, perguntei ao meu pai, em tom de brincadeira, se aquele era um ônibus de carregar formigas. Não tinha nem idéia de que havia uma cidade com este nome no Estado de Minas Gerais. 

Um professor por natureza, e tendo morado no Rio de Janeiro por oito anos enquanto servia o Exército, meu pai queria nos mostrar tudo o que pudesse.  O Parque Municipal com os balanços e pedalinhos, o Aeroporto da Pampulha, o Zoológico, onde fiquei impressionada, não com o leão ou o tigre, ou a zebra, mas com um animal que achei horrível: o macaco mandril, com a sua bunda vermelha que eu nunca esqueci.
Levou-nos para andar de bonde, de trolleybus (ônibus elétrico, de suspensório), a uma Feira de Amostra de Pedras Preciosas e até a uma granja de galinhas, com incubadoras e todas as galinhas brancas, bem diferentes das galinhas do nosso galinheiro na fazenda. 
O  único lugar onde meu pai levou apenas minha mãe, foi ao Museu de Cera, pois não era permitida a entrada de crianças. Eu, muito mimada, reclamei que crianças deveriam ter os mesmos direitos dos adultos. Quando cresci e fui ver um Museu de Cera, as deformidades e abnormalidades mostradas em cera me fizeram querer que ele fosse proibido para adultos também.
Fomos, também, `a casa de uma prima da minha mãe, Iraci, professora e funcionária do Ministério da Educação, casada com um Engenheiro Agrônomo, escritor e político, Abdênago Lisboa. Quando chegamos, ele perguntou ao meu pai como tinha conseguido achar o endereço naquela cidade grande. Meu pai não respondeu, mas depois falou conosco que um peixe acostumado a nadar no oceano, não se perderia num córrego. Morara no Rio de Janeiro por oito anos, e Belo Horizonte para ele era fácil. O homem continuou perguntando para a esposa dele se minha mãe, a prima, também era das "locas" onde ela havia nascido (Laranja da Terra). O resto da tarde, entretanto, nos tratou muito bem e amigavelmente, e Iraci serviu um jantar delicioso. E a sua falta de cortesia parecia ser só a casca, pois a sogra dele, tia Verônica, irmã do vovô Américo, morava com eles.
Mas, anos mais tarde, quando estávamos morando em Itabirinha, ele esteve lá, fazendo campanha política para Deputado Estadual e chegou `a nossa casa. Foi bem recebido e também eleito, mas duvido que tenha ganhado votos dos parentes caipiras.
Trouxe de volta revistas "Nosso amiguinho", um tesouro. Agora teria muito mais para ler do que apenas a Revista Jóias de Cristo (da congregação), os livros da escola, o Almanaque, a revistinha do Jeca Tatu que vinha com o Biotônico Fontoura e o grosso Dicionário Lello Ilustrado do meu pai. (Mais tarde, descobriria os livros guardados na gaveta do guarda-roupa com espelho do lado de fora, um livro sobre o Duque de Caxias e a Guerra do Paraguai, alguns romances de Machado de Assis, e "Eles também são humanos", de Himain Lacerda, um autor que estivera na congregação. Na mesma gaveta, a caixinha do pesado anel de ouro com as suas iniciais, NFG, Norival Fortunato Gomes e algumas fotos antigas, de colegas do Exército ou cartões e fotos de ex-namoradas. Minha mãe nem se importava com os últimas. 
Essa viagem a Belo Horizonte foi uma das mais importantes excursões educacionais que eu já tive. Só uma coisa meu pai se esqueceu de explicar para nós. Pelo menos não explicou antecipadamente. Foi quando estávamos indo para Belo Horizonte. A estrada estava em obras, havia escavadeiras e tratores trabalhando e, a uma certa altura, perto de Abre-Campo, um cheiro forte de alcatrão. Minha irmã Etelvina, sempre a primeira a ver e fazer as coisas, vendo que estavam passando um rolo em cima de uma camada grossa de um material preto e brilhoso, perguntou para minha mãe o que era aquilo. Minha mãe também não sabia. Ela só fez "sh... sh... sh..." com medo de que alguém ouvisse a conversa. Então, perguntou ao meu pai, que explicou para ela e para nós que aquela coisa preta era chamada asfalto. O ônibus começou a rodar muito mais suavemente daquele ponto em diante.


                            Mudança para o Norte (Norte do Rio Doce)


Não posso precisar o que aconteceu primeiro, se foi a decisão do meu pai de se mudar para o Norte ou a do meu avô de se casar novamente. O fato é que as duas coisas aconteceram simultaneamente.
Poucos dias antes de nos mudarmos para um lugarejo chamado Itabira (hoje Itabirinha, MG para diferenciar da cidade de Itabira (do Mato Dentro, terra de Carlos Drumond de Andrade), numa região que as pessoas chamavam de Norte por estar ao Norte do Rio Doce, Margarida, uma garota de dezesseis anos, que fora empregada na casa do tio Gil, mudou-se para a casa do vovô. 
Minha mãe sugerira que se casasse com uma prima do meu pai, na casa dos trinta, mas ele se apaixonara pela Margarida e queria se casar com ela. Foram a Lajinha tentar casar-se, mas o Juiz de Paz se recusou a fazer o casamento de uma garota de dezesseis anos com um senhor de sessenta e sete. Então, vovô decidiu que não era culpa dele que viveriam juntos e disse que se considerava legalmente casado. 
Margarida era calada, magra, bonita, com cabelos compridos e uma cruz tatuada num dos pulsos. Fumava, o que para nós parecia estranho. Meu avô também fumava, mas ele já era velho. A mãe dela, uma senhora que para mim parecia uma cigana, trouxe Margarida para a casa do vovô. A garota parecia estar conformada com a sorte, não aparentava medo, nem reclamava de nada, como uma ovelha levada para pastos melhores, onde supostamente haveria mais dinheiro e a vida seria mais fácil do que cozinhar e lavar na casa dos outros.
Nesta época, todos os tios e tias solteiros já haviam se mudado, exceto pelo tio Filadelfo,  que estava com uns dez anos. Foi muito difícil para nós nos despedirmos dele e deixá-lo com aquela família completamente estranha, a nova família do vovô. 
Ainda com escuro, o caminhão se afastava de mansinho. O vovô, a Margarida e o tio Filadelfo ficaram no terreiro... Etelvina e eu de calças compridas, eu feliz por ter convencido meu pai a deixar-nos usá-las. Mas com um nó na garganta...e os olhos marejados de pena do nosso Tio Definho. 
Logo depois que nos mudamos, tivemos a notícia de que ele estava andando armado de canivete e brigando na escola.
Quando voltamos, meses depois, para visitar o vovô, a casa estava completamente diferente, dando sinais de que havia sido introduzida uma cultura de outra família. Mas o vovô parecia feliz. Margarida cozinhava muito bem, era agradável e continuava torrando o fubá que era guardado na latinha amarela e que vovô gostava de comer com a comida. Quando era época da colheita de jabuticabas, ela colhia bastante e deixava na bacia em cima da mesa para nós.
Algumas das minhas tias quando vinham visitar, queriam que a casa voltasse a ser como antes; lavavam e esfregavam os assoalhos de madeira (meu avô não gostava disto nem nos tempos antigos) e reclamavam da interferência da família da Margarida na casa e do estilo de vida que levavam.
Minha mãe se ajustou rapidamente `a nova situação. Nas nossas férias escolares, sempre vínhamos passear em Laranja da Terra, ficávamos uns dias na casa dos parentes do meu pai, especialmente na tia Lilica, mas passávamos alguns dias na casa do vovô também. Comíamos a comida deliciosa da Margarida, conversávamos amigavelmente e, `as vezes, minha  mãe fazia roupas para eles. Vovô parecia contente com o casamento.
Tiveram três filhos, um menino, João Batista, e duas meninas, Ednéia e Luciléia. A mais nova faleceu de krupp ainda bebê. A Ednéia (Néia), uma menina linda, de Leucemia, com quatro anos. Foi sepultada com um vestido bordado, que minha mãe fizera para ela. 

                                              

                                                   
                                       Parte II

               - História dos Ancestrais - Miscegenação-

Início da Imigração Alemã para o Brasil - Comendadores e coronéis -  Sangue italiano - Cadê minha África? - "Fui pega no laço"...

                            Muito tempo antes de eu ter nascido...

Antes que o caminhão, lotado com a mudança e conosco mesmos, viaje horas na Rio-Bahia sem asfalto, pegue a estrada de Valadares para Mantena, também sem asfalto e cheia de costelas, até Divino das Laranjeiras, depois uma outra, estreita e cheia de curvas, passando por Mendes Pimentel para chegar a Itabira (hoje Itabirinha, MG), gostaria de voltar no tempo e falar um pouco sobre pessoas e fatos ocorridos muito, muito tempo antes de eu ter nascido.
Do momento em que o caminhão estacionar em frente `a casa onde vamos morar, se não tiver explicado anteriormente quem é este meu tio-avô, tio Reginaldo, de quem o meu pai alugou a primeira casa onde moramos e como foi para Itabira lá, fica difícil de entender o desenrolar dos fatos. E, se parar a história na porta da casa para dar todos os detalhes, as pessoas dentro do caminhão, cansadas da viagem de mais de doze horas, ali esperando, vão ficar furiosas comigo.
Sei que alguns que estão lendo este livro, não gostam muito de árvores genealógicas, e talvez, irão pular esta parte para ir direto ao ponto onde a mudança está sendo descarregada do caminhão. Mas, prometo que, aqueles que tiverem paciência para a lerem, estarão bem mais preparados para compreender tudo o que vai acontecer. Não só conosco, mas com Itabira, o lugarejo para o qual estamos nos mudando, e os demais vilarejos  nesta  faixa contestada por Minas e Espírito Santo, onde  não existe jurisdição definida e, alguns salafrários se aproveitam disto para burlar a lei e o direito, cometer fraudes, usurpar propriedades, impunemente.  E, infelizmente, `as vezes acobertados por autoridades de um ou do outro estado a que pertencem, ou melhor, que reclamam a sua posse ao mesmo tempo. 
Também terão a oportunidade de perceber como a História interfere no desenrolar da nossa própria história e como nós podemos mudar o curso da história, a nossa, de outras pessoas e de lugares, quando resolvemos que não nos subjugaremos aos atos de injustiça que ocorrem ao nosso redor.

Fui registrada Leonina Fortunato Heringer, mas deveria ter sido Leonina Heringer Fortunato, pois normalmente o sobrenome do pai vem por último. Mas, meu pai, Norival Fortunato Gomes, quando foi me registrar, achou que soava melhor Fortunato Heringer do que Heringer Fortunato. Depois que lerem este livro sobre os meus ancestrais, verão que nem são estes mesmos os sobrenomes que deveriam constar do meu nome, se é que há uma regra a seguir. Por exemplo, um meu bisavô paterno, cujo nome era Joaquim Gomes Coelho passou Gomes e não o Coelho (último nome) para a sua descendência. Por outro lado, pegamos o Fortunato do meu pai, quando o nome dele era Norival Fortunato Gomes (se é o último nome que prevalece, deveríamos ter pegado o Gomes, como minha mãe), Erandi Heringer Gomes.

Do meu avô paterno, Alvim Fortunato Gomes, não sei muita coisa. O que escrevo aqui são pedaços que ouvi do meu pai e consegui do meu irmão e meus primos, e ainda não tenho documentação suficiente para provar. Sei que era filho de José Fortunato Gomes e Maria Aniceta de Novais, e veio para Laranja da Terra, procedente de Divino, município de Carangola na época, de acordo com meu primo Orlando, filho do tio Astrogildo e meu primo Maurício (que ouviu do pai dele, tio Nolmerindo), para fugir de complicações com a justiça, mas não sabem detalhes.
 Meu pai dizia que eu era parecida com a avó dele, Maria Aniceta de Novais, baixinha e brava. Conta-se que o Coronel Novais, de Faria Lemos (que na época era município de Carangola), que foi prefeito de Carangola entre 1912 e 1916), o qual penso ser parente da minha bisavó, era muito valente e tinha muitos jagunços. Certa vez, um empregado dele foi preso na rua em Carangola, porque estava bêbado. O Coronel Novais mandou um recado para o delegado dizendo que se não o soltasse até `as tantas horas, ele viria com os seus bois de carro, laçaria a cadeia e a arrancaria. O delegado não deu a mínima atenção `a mensagem. Continuou o seu dia como de costume. Só foi se dar conta da coisa, quando alguém o alertou a olhar para o morro que dava acesso `a cidade. Dezenas de bois estavam vindo pela estrada. O delegado apressou-se a soltar o preso e mandá-lo escoltado encontrar-se com o patrão. Soube que fizeram um documentário sobre o Coronel Novais, mas não tive a oportunidade de assistir. Uma vez, quando estudava na faculdade em Carangola, disse a uma minha professora de sobrenome Novais que eu era descendente desta família e que meu pai dizia que eu era brava porque puxara `a família Novais, uma família brava. Ela respondeu: "Brava e rica." Poderíamos ter conversado mais sobre os nossos ancestrais, mas ficou nisto.
Pelo que dizem, vovô Alvim também tinha capangas (entre eles o próprio irmão, Vitalino), e, apesar de ser um homem muito pacífico e trabalhador, era bastante valente, suas encrencas em Laranja da Terra, segundo meu irmão mais novo, Fábio, que ouviu do  nosso pai, Norival Fortunato Gomes, causadas pela invasão de suas terras por confrontantes. Interessante que somos três irmãs, a mais nova doze anos mais velha do que o Fábio, e meu pai nunca contou esta história para as filhas. Veio a contar para o filho caçula, talvez pela oportunidade, ou porque ele é homem.
Aqui transcrevo as palavras do Fábio: "Nina, o negócio é o seguinte: Aquela fazenda que foi do do Seu Alvino Heringer, o Vovô Alvim Fortunato comprou do nosso bisavô, João Carlos Heringer (pai do Vovô Américo) com dois anos pra pagar. Era tudo mata. Então pegava lá embaixo, vinha passava onde era o tio Osvaldo, aquela região, vinha cá onde é o tio Nolmerindo, o tio Astrogildo, ía lá na Flor da Mata, na tia Valmira. Só que, com o passar do tempo, ele plantou muito café, colheu muito milho, tinha muito porco e o João Carlos Heringer veio com um filho, para receber. Só que quando chegou cá, eles vieram a cavalo, nas mulas, lá de Alto Jequitibá, a mãe que contava como que foi. Então a mãe falou que o João Carlos Heringer chegou pra receber e o Vô Alvim falou: Oh, o jeito é o senhor apanhar as terras de volta porque eu plantei, produzi muito, mas eu não tenho pra quem vender. Não consegue vender café, não consegue vender milho, (estavam numa recessão). Então o João Carlos Heringer falou pro filho dele... a mãe falava o nome dele, mas eu não lembro não (esta história eu ouvi e era o tio Elói Carlos Heringer): Deixa o homem quieto aí, o homem é trabalhadeira (tinha sotaque alemão) e vamos dar mais três anos pra ele pagar. E, com três anos, quando ele voltou, as coisas já tinham mudado e ele conseguiu pagar as terras pro João Carlos Heringer. E, com isto a mãe contava que se o João Carlos Heringer fosse uma pessoa ruim, ele teria deixado de abençoar ela, que era uma Heringer.." (nascida em 1931, ano da morte do avô dela, João Carlos Heringer), "que casou com um Fortunato depois. Mas, com o passar do tempo, o Vô Alvim Fortunato, vendeu aquela parte de baixo pro Seu Alvino Heringer, lá onde é o cemitério e aquela coisa. E ficou com a parte de cá, onde ele construiu uma casa muito grande, uma fazendona de alpendre alí, muito alta. Mas o pai falou que (enquanto o Vô Alvim morava ainda na parte de baixo, onde tem o cemitério) tinha um pessoal, uma família "B", que eu não sei se eles ficaram invejosos pelo Vovô Alvim Fortunato ter comprado aquele monte de terras, sei que queriam invadir alguma coisa. E o Vovô Alvim se sentiu acuado. Aí, esses "B" vieram cá na fazenda para matar  o Vô Alvim. A Vó Etelvina, quando viu os dois irmãos  lá fora no terreiro, que perguntaram a ela: Seu Alvim está? Ela disse sim. Aí eles pediram para chamar o Vô Alvim para ir lá fora no terreiro, que queriam conversar em particular com ele. Como ela já sabia que eles queriam matar o vô Alvim, ela respondeu: Vocês podem entrar aqui na cozinha, porque marido  meu não tem segredo comigo. E quando um subiu a escada e entrou na cozinha, ela pegou uma foice que mantinha atrás da porta, tão afiada que dava para raspar cabelo. Aí o Vô Alvim tá ali, e o cidadão   conversando com ele, e de todo jeito que ele virava para conversar com o Vô Alvim, a Vó Etelvina rodava com a foice, atrás dele. E qualquer movimento que ele fizesse, ela cortava ele na foice. Quando o outro irmão, que estava para entrar, viu aquela situação, voltou para o terreiro. Quando o cidadão que entrou conseguiu virar para o lado da porta, ele pulou lá embaixo, nem usou a escada, e saíram correndo".  (A sorte deles estava selada). "O Vô Alvim incumbiu o irmão, tio Vitalino, pai do "Flozino", o mudo, de fazer a caçada desta família. Tio Vitalino matou um por um, alguns deles nem os corpos foram encontrados, mas o pai contou que um ou mais de um, foi enterrado num morrinho em frente `a casa em que você nasceu..." (Local em que mais tarde foi construída a nossa casa amarela) "e ninguém nunca soube. O último desta família, tio Vitalino matou numa emboscada, escondido numa moita de bambu   na descida do morro depois da venda do Jairo. O homem estava montado num cavalo e o tiro foi tão forte que  quase cortou o homem no meio." 
Nota: Tempos de ignorância em que as pessoas queriam resolver questões pelas próprias mãos. Penso, também que, não querendo defender meu avô, que já tinha um histórico de crime, a idéia era de que, se não eliminasse todos, acabaria sendo morto, como era a intenção dos dois "B", quando foram na casa do Vovô Alvim.
  Meu pai também contava que, certa vez, o Euflozino, filho do tio Vitalino, que se tornara surdo-mudo em decorrência da Febre Espanhola (Pandemia que durou de 1918 a 1920 e matou milhões de pessoas), chegou `a noite na fazenda do Vovô Alvim e bateu na porta. Como perguntavam quem era e ele não respondia, abriram a porta com as carabinas apontadas para ele. "Flozino" passou tanto aperto que gritou uma das poucas palavras da qual se lembrava (de antes da febre), que teve aos quatro anos: "Pa...pai!"
Sobre a vinda do Vovô Alvim para Laranja da Terra, a versão do meu primo José (Juca) ouvida de sua mãe, tia Lilica, é de que Vovô Alvim Fortunato saiu de Divino de Carangola acompanhado de um irmão (do qual não se lembra o nome, mas suponho que seja o tio Vitalino) e por uma senhora negra idosa, da qual não se lembra o nome. Quando chegaram a Alto Jequitibá, acamparam debaixo do jequitibá, uma árvore frondosa (onde os tropeiros acampavam e que deu nome `a cidade), e armaram as trempes, onde a senhora fez um "boião" (comida). Depois foram acompanhando o Rio José Pedro, até chegar ao lugar chamado Beira Rio. De lá foram abrindo picada e subindo a íngreme serra que mais tarde  se chamaria Morro da Padaria, e assentaram na beira do Rio Fama, onde construíram um ranchinho. 
Dali ficou sabendo de um fazendeiro chamado Joaquim Gomes Coelho (Vovô Quinca Silvestre, pai da Vovó Etelvina), que tinha várias filhas em idade de casar (e morava no Córrego Laranja da Terra) e foi visitá-lo . Ao final da terceira visita, se expôs ao fazendeiro: "Eu preciso me casar e achei a sua filha Etelvina muito bonita. Se ela quiser se casar comigo e o senhor deixar..." Vovô Quinca perguntou `a filha se ela gostaria de se casar com o rapaz, ela respondeu que desde a primeira vez que ele havia ido lá, gostara dele, mas não falara nada. E já que ele era trabalhador...
Vovó Etelvina tinha um gado e Vovô Alvim tinha dinheiro que trouxera de Divino do Carangola e, como eram muito trabalhadores, prosperaram bastante.
Alguns anos e Vovô Alvim começou a comprar café e vender para uma firma grande em Manhumirim e  estava indo muito bem e construindo um sobrado (casarão). E até cercara um terreno na fazenda com arame farpado, para construir o cemitério, onde estão enterradas muitas pessoas da região. Sua filha mais velha, Maria (tia Lilica) estava estudando no Colégio Evangélico em Alto Jequitibá e ficava no internato.
 Entretanto, nas suas idas a Manhumirim, os amigos o levavam para comer peixe e tomar pinga num bar, onde ficavam embriagados. Numa dessas feitas, um dos componentes da mesa, (como Vovô Alvim se lembrava depois), o qual havia apenas comido o peixe e não bebido, naquela noite, tirou um papel branco do bolso e deu para um deles assinar e depois para o vovô, que assinou também.
Dali a algum tempo, chegou um oficial de justiça, amigo do vovô, na fazenda, com  uma intimação e disse: "Seu Alvim, tenho uma intimação do juiz para o senhor. Sei que o senhor é muito direito e fico até sem graça de ter que vir aqui numa missão destas. O senhor tem sete dias para se apresentar ao juiz."   Vovô não sabia do que se tratava, mas como a assinatura dele estava nos documentos, disse ao homem: "Não vou esperar sete dias. Vou lá hoje mesmo." 
Tinha bastante café nas mãos dos compradores da firma R, com quem negociava, que dava  para pagar a dívida,  mas estes não quiseram lhe pagar. E como  já tinha sido procurado por um senhor de Manhumirim que queria comprar a fazenda (Seu Alvino Heringer, sobrinho do meu avô Américo),  foi `a casa dele, onde pernoitou. Seu Alvino perguntou-lhe se ele aceitava o preço que ele havia oferecido e ele respondeu que sim. Então  foi pegar o dinheiro num baú, mas meu avô lhe disse que só precisava dele no dia seguinte. Na manhã seguinte, puseram o dinheiro num saco branco e se encaminharam ao fórum. Lá chegando, o juiz chamou Vovô Alvim para entrar na sala e Seu Alvino já ía entrando também. E o juiz: -Por favor, espere aí fora. -Eu estou com ele, Seu Alvino disse. - Pode deixar ele entrar, meu avô retrucou. 
-O senhor pode pagar a dívida em prestações, Seu Alvim. Mas vovô fez um gesto para o   Seu Alvino, indicando que era  para lhe trazer o saco de dinheiro, e disse que iria pagar tudo . O juiz então, lhes disse que não iria nem contar o dinheiro, pois conhecia bem os dois.

Sua filha Maria (Lilica, mãe do Juca), que estava no internato, teve que deixar a escola e voltar para casa.  Narrava estes fatos aos filhos, com grande ressentimento da pessoa que pegara a assinatura do pai fraudulentamente, e  dos R, compradores de café com que o pai negociava.

Vovô  pediu ao Seu Alvino Heringer, apenas três meses para se mudar, enquanto construía um rancho numa terra que tinha no Córrego Laranja da Terra . Lá construiu tudo novamente, moinho. monjolo, lavouras de café e e um sobrado... Quando nasci, ele já havia falecido, mas, quando criança, eu gostava de deitar no assoalho da sala grande no segundo andar e ficar admirando as fotos nas paredes e ouvindo o relógio de carrilhão, marcando as horas e cantando “Hora certa, hora certa”...

Meu avô materno, Américo Marcelo Heringer, vizinho de fazenda do Vovô Alvim, dizia que gostava dele, pois era um homem de palavra e bom vizinho. Nunca deixava cercas estragadas nem gado invadindo terras de confrontantes, como outros.
  Faleceu muito jovem, depois de ter um derrame. Tinha a mania de comer ovos fritos tarde da noite e quando perguntavam se não lhe faziam mal, respondia: "Meu estômago não sabe olhar horas.”. Conheci poucos parentes do Vovô Alvim, um deles o "Flozino", mudo, que já mencionei, sobrinho, e uma sobrinha, Maria, que foi criada na casa do tio Astrogildo e se casou com o tio Vadinho, irmão da Vovó Etelvina. Também uma cunhada, a tia Viana, que visitamos no Córrego Azul, uma senhora negra, muito agradável, viúva de um irmão dele, do qual não me lembro do nome, mas sei que tinha os olhos azuis), e os filhos, Juvenil e Eliza.
 Interessante sobre o "Flozino", que viveu por uns tempos (e faleceu) na casa dos meus  pais, é que não ouvia nada. Você podia gritar nas costas dele que nem se mexia. Mas percebia quando passava avião no céu. Penso que era por causa da vibração. Além da palavra papai, que gritou na hora do aperto, lembrava-se de "maman" (chamava minha mãe de maman). Seu Júlio Vieira era "Tartufo" e meu cunhado Júlio "Tartufo Marrô" (Marrô parecia ser óculos pois fazia o gesto com as mãos. Meu pai, que tinha o apelido de Nego quando criança era "Tetefo", Clarinda, minha irmã era "Iúda", cabeluda. Clarinda dançava com ele e ele se esbaldava de tanto rir. (Nota: hoje, 17 de abril de 2021, estamos já no segundo ano de uma Pandemia, Covid 19, e não tenho notícia de crianças de quatro anos sendo atingidas, nem ficando com sequelas como o Euflozino ficou nesta idade. Sei de adultos com sequelas, perda do paladar, olfato, perda dos movimentos e até morte cerebral).
 Alguns anos atrás, minha prima Mariza, que queria conseguir a cidadania italiana, foi, juntamente com meu irmão Fábio, procurar o assentamento do nascimento do Vovô Alvim, em Divino de Carangola, mas a igreja onde tinha sido batizado não existia mais e os arquivos haviam sido transferidos para a matriz em Carangola. Mas alguns dos livros transferidos haviam se extraviado, incluindo o do ano em que o Vovô Alvim nasceu.

Etelvina Maria Gomes, a mãe do meu pai, era filha de Joaquim Gomes Coelho, dono da Fazenda do Suíço, em Laranja da Terra, em frente `a Pedra do Peixe. Vovô Quinca Silvestre, assim chamado porque era filho de Silvestre Gomes Coelho (de Iúna). Quinca do Silvestre, abreviado para Quinca Silvestre. Dizem que o vovô Quinca falava tão alto que, quando contava um segredo na cozinha da fazenda, dava pra ouvir lá na estrada. Minha mãe o conheceu e disse que tinha um cachorro chamado Nabuco e um cavalo apelidado de Pica-pau. A mãe da vovó Etelvina, Julieta Maria de Jesus (não sei se assinava Gomes, do vovô Quinca), era filha de Francisco Tomás Leite Ribeiro, o Comendador Leite (de Lajinha) e de uma de suas escravas, da qual ainda não consegui descobrir o nome (não admira que o meu pai fosse moreno e tivesse o apelido de Nêgo). Sua irmã gêmea chamava-se Júlia Maria de Jesus e casou-se com o irmão do Vovô Quinca, José Gomes Coelho, o Tio Zeca, que morava em Mutum, portanto as irmãs eram concunhadas. Segundo a Iraci, filha do tio Quinquim (Joaquim Gomes Coelho Filho) irmão da vovó Etelvina, o pai dela contava que o Comendador Leite comprou as terras em Laranja da Terra, que íam desde a Onça até `a presente Fazenda do Suíço, para dar `as duas filhas espúrias. Na verdade, ele possuía sesmarias (40 sesmarias em Santo Antônio de Pádua, R.J. e 40 sesmarias no Espírito Santo (Córrego São Domingos), que pertencia a Rio Pardo, hoje Iúna, E.S.), onde veio a ser fundada Lajinha, hoje Minas Gerais. As sesmarias eram uma grande extensão de terra distribuídas a pessoas ordeiras, com a finalidade de cultivar a terra e propagar a fé católica. 
A biografia do Comendador Leite lista quatro filhos, um deles, José Leite Ribeiro, casado com uma prima, Ana Leite Ribeiro; dos outros ainda não consegui descobrir os nomes. Tenho que pesquisar mais, pois segundo a história da fundação de Lajinha, foi um genro do Comendador Leite, Antônio Pedro Garcia, quem doou um alqueire de terra na propriedade que herdara do sogro, a Mateus Laranja e José Lucas de Barros, que cortaram a mata e prepararam o terreno para a construção da capela de Nossa Senhora de Nazaré, dando origem `a cidade de Lajinha.  Se este genro era casado com uma filha ilegítima também, não sei. É interessante  que, só no dia 10 de dezembro de 2011, com cinquenta e oito anos de idade, escrevendo estas memórias, fiquei sabendo que a minha bisavó era filha de escrava. Não me lembrava se ela era Júlia ou Julieta, as gêmeas filhas do Comendador Leite, nem sabia o nome da esposa do Comendador Leite, que eu presumia ser minha trisavó. Então, decidi ligar para a Aurinha, esposa do primo Adeíldo Heringer Gomes. Ela é filha da Colinha (Iraci Leite Ribeiro, esposa do Seu Álvaro Dias, filha de Arnaldo Leite, que era filho de José Leite Ribeiro, filho do Comendador Leite, e prima da vovó Etelvina). Tia Julica (Júlia), irmã da vovó, sempre passava lá na casa da Colinha pra visitar a prima. A Aurinha me deu o telefone do tio dela, Seu José Leite Ribeiro, irmão da Colinha, que me deu os nomes do seu pai, seus tios e do avô, José Leite Ribeiro, filho do Comendador. Mas disse que não sabia o nome do outro (ou outros) filhos do Comendador. Orientou-me a ligar para a Shirley Oliveira Alvim, esposa do Antônio Alvim, filha de Alzira (Zizinha, também filha de José Leite Ribeiro), e muito interessada na história da família. Shirley me deu muitos nomes, inclusive de dois filhos de José Leite Ribeiro com uma escrava, “tio Levindo Leite e tio Mendonça Leite, pretos de alma branca”, como ela diz. Disse que brincavam com o tio Mendonça, dizendo que tinha "pé de porco e nariz de onça". Mas nada sobre minha bisavó. Sugeriu que eu escrevesse uma carta para a Paróquia Nossa Senhora Mãe dos Homens, de Iúna (Lajinha pertencia a Iúna, na época do Comendador), que me dariam informações.
Fiquei desencorajada. Estava procurando pela minha trisavó, que era  mãe das filhas do Comendador Leite, e falando com os familiares dele, mas não conseguia descobrir sequer seu nome.
Resolvi ligar para os primos do meu pai que ainda estão vivos. Comecei pela Iraci, filha do tio Quinquim (Joaquim Gomes Filho), casada com Antônio Sanglard, que foi sócio do meu pai na malharia. Ela foi direto ao assunto. “Leonina, o meu pai contava que a mãe dele, Julieta (esposa do vovô Quinca) tinha uma irmã gêmea chamada Júlia, e era filha do Comendador Leite com uma escrava".
 Levei um choque, não pelo fato da nossa herança africana estar tão próxima, mas por não ter sabido disto até `aquela data, quando eu já estava com cinquenta e oito anos. Será que o meu pai, que já era falecido, sabia? Minha mãe, que estava com Alzheimer na época, mas que  tinha momentos de grande lucidez, foi categórica em dizer que ele não sabia e ela também não. Minha tia Ilda, viúva do tio Nolmerindo, também não sabia. Interessante é que o meu filho Olímpio Júnior tem os cabelos crespos e meu pai sempre brincava dizendo que ele havia herdado os cabelos da tia Viana, negra, esposa do tio dele, irmão do vovô Alvim, penso que é Vitalino, que não tinha relacionamento de sangue conosco. Penso que se soubesse não esconderia, nem atribuiria o detalhe do cabelo do meu filho `a tia Viana. Como sou a mais morena dos filhos, sempre me dizia orgulhosamente que nós dois tínhamos a cor de jambo, cor que não desbota…
Agora posso entender, não só o cabelo crespo do meu filho Júnior, mas também porque tenho os glúteos avantajados, para não dizer a bunda grande, completamente diferente da minha mãe. Fiquei contente de ter encontrado um ingrediente que faltava no rótulo da composição do meu sangue.
Tornei a ligar para o Seu José Leite para lhe contar que havia descoberto a minha ancestralidade negra (escrava). Perguntei-lhe novamente se sabia alguma coisa da minha trisavó, mas ele disse que não. A única coisa que acrescentou, foi confirmar a história da sua prima Shirley, sobre os filhos do avô deles, José Leite Ribeiro, Levindo Leite e Mendonça Leite, os "pretos de alma branca", que foram registrados como filhos do avô e da esposa legítima, e criados com o casal.
Disse também que ouviu que o Comendador Leite tinha uma fazenda no Ocidente, para onde levava as escravas escolhidas (uma espécie de harém, comentário meu e não dele).
Pelo jeito, os descendentes legítimos do Comendador não impediam que os filhos tivessem contato com os parentes, descendentes de escravos, caso contrário não haveria amizade entre a tia Julica e a Colinha.

Quando o Comendador veio para Lajinha, de Santo Antônio de Pádua,   trouxe uma santinha (N.  Senhora de Nazaré, do Córrego N. Senhora de Nazaré em S. João Del Rey onde morava sua família), que foi colocada na primeira capela na Fazenda S. Domingos e, eventualmente, transferida para a capela na vila, tendo dado nome `a Igreja de  N. Senhora de Nazaré, em Lajinha. A santinha permaneceu no altar daquela igreja até os anos sessenta ou setenta, quando a esposa de um político, Maria José Nogueira Pena, esposa do Deputado Estadual José Ribeiro Pena, em visita a Lajinha, talvez percebendo o valor da peça barroca, encantou-se com ela. Foi-lhe dada de presente por um senhor proeminente na cidade, que estava encarregado da paróquia, sem padre na época.
Padre Rivadavia Gomes da Silveira, ao assumir a paróquia ainda tentou sem sucesso, recuperar a santinha.
(Nota: Maria José também foi deputada estadual em Minas Gerais, durante o período de 1967 a 1975 ( e 6ª legislaturas), respectivamente pelo PTB e pela ARENA. A biografia dela diz que só ingressou na política depois do marido ter encerrado a sua carreira como deputado. Não  se sabe o ano em que esteve em Lajinha, mas deveria ser apenas esposa do deputado).


Fiquei intrigada com um detalhe. O Comendador Leite não deu o sobrenome `as suas filhas com a escrava, mas colocou um nome que estava na família dele há muitos anos, Maria de Jesus nas filhas gêmeas (Julieta Maria de Jesus, minha bisavó e Júlia Maria de Jesus). Uma das avós do Comendador chamava-se Escolástica Maria de Jesus Moraes. Não sei até que ponto este era um costume dos senhores de escravos, de doarem os seus filhos espúrios a Maria e Jesus ou se ele teve alguma intenção de perpetuar a memória da sua avó nas filhas. O certo é que não sei também se era costume os senhores de escravos doarem terras para seus filhos mulatos. Mas o Comendador Leite, segundo relato da Iraci, que ouviu do pai, Tio Quinquim, doou terras para as filhas.

Alguém me disse que o Comendador Leite teria tido quatro filhos legítimos. Entretanto, não descobri outro além do José Leite Ribeiro (Nota: até 2021), mesmo após demorada pesquisa e de ter ligado para um que me indicou outro, que me indicou outro, e acabar falando com Lajinha quase toda. Descobri também, que quase todas as pessoas daquela cidade, têm algum tipo de parentesco. Portanto, encontrei informações apenas deste filho legítimo e das duas filhas com a escrava, minha bisavó Julieta e a sua irmã gêmea, Júlia. 


Por incrível que pareça, sem que eu procurasse, estão aparecendo informações que eu não tinha e nem esperava conseguir, sobre o meu trisavô, Comendador Leite. Um amigo de Lajinha, Gilberto Bahia, para quem enviei algumas revistas Bate-Papo, com uma crônica sobre o meu encontro inesperado (depois de mais de quarenta anos) com a irmã dele aqui em Boston, enviou-me a Revista de Lajinha (2000), que traz a biografia do meu trisavô Comendador Leite. Vejam a cópia na página que se segue. 


Transcrição do Artigo sobre o Comendador Leite na Revista de Lajinha

 

 

 

Francisco Tomaz Leite Ribeiro, este era o nome verdadeiro do Comendador Leite. Alguns registros históricos que encontramos na Prefeitura, Câmara e Escolas de Lajinha, acrescentam Aquino ao seu nome, porem nos autos do Inventário dos Bens deixados por seu pai, está bem claro que seu nome não era em homenagem ao Santo Tomaz de Aquino. O nome Aquino é, na realidade, patronímico usado por alguns descendentes da tradicional família Leite Ribeiro.

Conforme informações precisas do Professor Armando Vidal Leite Ribeiro, o Comendador Leite era filho do Capitão Antônio Leite Ribeiro, nascido em São João Del Rey, no ano de 1773 e falecido em 16/05/1848 em Nazaré, na Fazenda “Ribeirão do Fundo”. A sua mãe chamava-se Bernardina Constança de Barros. O inventário dos bens do casal foi requerido em fevereiro de 1856, ora recolhido ao Museu Histórico e Artístico de São João Del Rey.

O Capitão Antônio Leite Ribeiro, pai do Comendador Leite, era filho do Sargento Mor Joseph Leite Ribeiro e dona Escolástica Maria de Jesus. O Sargento Mor Joseph Leite Ribeiro era natural de Santa Eulália do Barroso, Termo de Guimarães, Arcebispo de Braga – Portugal, onde nasceu em 1723. Casou-se em 1764 e faleceu 04/10/1801, em São João Del Rey.

Foram seus pais: Francisco Leite Ribeiro e Isabel Ferreira, nascidos e falecidos em Portugal.

Os estudos genealógicos da Família Leite Ribeiro, chegam a Theodoredo – quarto Rei Visigodo da Espanha, eleito em 419 da Era Cristã, no ano 451. A geração de nobres é extensa e chega a D. Sancha, Rainha de Leão e seu marido, D. Fernando, primeiro rei de Castela.

Já a árvore genealógica de Dona Escolástica Maria de Jesus Moraes, avó do Comendador Leite, passa pela Espanha e Portugal e remonta a Dom Fernando e sua quinta mulher, Dona Isabel de França.

A família abrange a mais variada coleção de patronímicos, mas onde predominam Leite Ribeiro, Ribeiro Leite, Vidal Leite Ribeiro, Ribeiro de Almeida, Teixeira Leite, Leite de Barros, Ferreira Leite, Leite do Vale, Leite Guimarães, Aquino Leite. Os estudos sobre a família são extensos e vários livros se ocupam do assunto. Autores consagrados, como Armando Vidal Leite Ribeiro e Afonso E. de Taunay nos legaram informações preciosíssimas.

Como vimos, Comendador Leite era descendente de importante família, pioneira e fundadora de diversas cidades em Minas, São Paulo e Rio de Janeiro. Contudo, o insigne Comendador da Ordem de Cristo, deixou imensas fazendas de sua família e os tios Barões e Baronesas, Condes e Condessas do Brasil Império para se aventurar por terras cobertas de matas e iniciar, com seu suor, um trabalho que se estenderia por mais de um século, até chegar `a nossa geração.

Comendador Leite era o sexto de uma prole de treze irmãos, todos portadores de títullos, honrarias e propriedades, de extensas glebas de terras em Minas e Rio de Janeiro.

 

(Texto extraído do original editado pelo Jornal Conunicatto, de Iúna, Espírito Santo, Roberto Carlos Scardini Justo Marcondi, advogado, professor e historiador. 

 

(Ilustração: foto com a seguinte legenda: José Leite Ribeiro, filho do Comendador Leite)..Apesar do artigo na revista dizer que ele pertencia `a Ordem de Cristo, minha intuição e pesquisa me levam a pensar  que é Ordem da Rosa. A Ordem de Cristo é muito antiga (1319). Segundo a Wilkipidia "A Ordem de Nosso Senhor Jesus Cristo originalmente era uma ordem religiosa e militar, criada a 14 de março de 1319 pela bula pontifícia Ad ea ex quibus cultus augeatur do Papa João XXII, que, deste modo, atendia aos pedidos do rei Dom Dinis. Recebeu o nome de Ordem dos Cavaleiros de Nosso Senhor Jesus Cristo ou Ordem da Milícia de Nosso Senhor Jesus Cristo e foi herdeira das propriedades e privilégios da Ordem do Templo".

E sobre a Ordem da Rosa que "A Imperial Ordem da Rosa foi uma ordem honorífica brasileira. Foi criada em 17 de outubro de 1829 pelo imperador D. Pedro I (1822 — 1831) para perpetuar a memória de seu matrimônio, em segundas núpcias, com Dona Amélia de Leuchtenberg e Eischstädt, um dia após sua chegada ao Brasil. Foi extinta em 1891, juntamente com todas as outras ordens e títulos nobiliárquicos existentes no Brasil". 


Nota: Em Dezembro de 2018, após receber o green-card nos Estados Unidos, onde resido atualmente, visitei o Brasil, depois de mais de trinta anos. Infelizmente, Seu José Leite havia falecido de câncer, poucos meses antes da minha chegada. Meu irmão Fábio, `as vezes lhe dava carona de Lajinha para o Areado, onde morava, pois apesar do câncer e de estar usando uma sacola (possivelmente para coleta de urina) ainda ía a Lajinha fazer compras e carregava tudo sozinho, a pé. Disse que ele estava ansioso pela minha chegada, que tinha vários documentos antigos sobre a família para me mostrar que eu tinha dito que chegaria no início de 2018 e estava demorando muito. Realmente, pensava que pudesse ir em abril, para o XI Encontro da Família Heringer, mas o processo que demoraria três meses, estendeu-se por mais de um ano. Aurinha, filha da Colinha, a primeira que contactei para saber o nome da minha trisavó (a esposa do Comendador Leite, que na realidade não era a minha trisavó), me disse que o Tio José realmente tinha muitos livros, mas que não sabia com quem ficaram ou se haviam sido jogados fora. A casa onde morara, estava com cadeado na porteira, pois alguns dos herdeiros que cuidaram dele quando tivera cirurgia (sobrinhos, pois não tinha filhos), entraram na justiça por não concordarem com a partilha dos bens.
Sandra, viúva do meu primo Ailton, que mora em Lajinha, me levou para visitar a casa de vários parentes do lado "branco" da família do Comendador Leite. Fui recebida pela Shirley Alvim, que reuniu a irmã Maria das Graças e uma prima (Irmã de Caridade Vicentina, Maria Inácia, que mora em S. Paulo), descendentes do Comendador Leite, para um café da manhã...Shirley começou dizendo que Lajinha se chamava Capim Gordura, antes de ser apelidada Lajinha, por ter uma laje de pedra no Rio S. Domingos, onde passavam com pequena profundidade de água, antes de ser construída a ponte. Perguntei-lhe sobre algo que havia me falado sobre o Comendador Leite... A Sesmaria do Comendador incluía terras `a direita do Caparaó, ela me disse. (Tenho que pesquisar mais sobre o assunto). Confirmou que brincavam com o Tio Mendonça (um dos filhos de uma escrava do Sr. José Leite Ribeiro, filho do Comendador, que este batizou em nome dele e da esposa, e foi criado por eles, assim como o irmão, Levindo), dizendo: "Mendonça, pé de porco e nariz de onça". Perguntei a ela quem eram os descendentes do Tio Levindo Leite e Mendonça Leite, na expectativa de que encontrasse os parentes do "lado negro" da família, mas ela disse que não sabe.  A irmã da Shirley, Maria das Graças falou sobre um episódio que me deixou bastante triste. A medalha da Comenda do Comendador Leite foi encontrada na matinha onde os escravos enterraram o mesmo, num lugar onde eram enterrados os escravos. Segundo ela, as sepulturas dos escravos eram cercadas com cerquinha de madeira, que a esta altura  se decompusera. Mas que, talvez, a sepultura do Comendador tenha sido cercada com pedra, pois, anos atrás, algumas pessoas (incluindo um pastor evangélico), trouxeram a medalha e tentaram vendê-la para descendentes do Comendador. Como os familiares não quiseram oferecer a quantia estabelecida pelos vendedores, os negociantes continuaram com a preciosidade (valor sentimental e histórico) e não se sabe o que foi feito da mesma. Também gostaria de vê-la para me certificar de que ordem era.
Perguntei sobre a santinha (Nossa Senhora de Nazaré, que o Comendador trouxe na mudança e Shirley disse que um senhor proeminente na sociedade lajinhense comprou a imagem do Padre Rivadavia, para oferecer `a esposa do Deputado.

 Depois fomos `a casa do Seu Zito (outro José Leite), próximo `a Escola Estadual Dr. Adalmário José dos Santos, este sobrinho do Seu José, que faleceu antes da minha ida e dizia ter muitos documentos que queria me mostrar. Ele e sua esposa me receberam com muito carinho e ele me contou sobre como o Seu José, seu primo, fora para o Rio de Janeiro e montara uma banca de revistas, e que, a uma certa altura da sua vida, ele mesmo trabalhara na banca. Que era muito culto, gostava de estar informado, que sua casa estava num processo (por isto a porteira tinha um cadeado), pois os sobrinhos que cuidaram dele até `a sua morte, estavam reclamando uma parte maior que a dos outros sobrinhos, herdeiros naturais de seus bens. Pensei em ir a Durandé, onde moravam estes sobrinhos, mas calculei que os supostos documentos, estivessem na casa do Seu José, e que nem eles poderiam ter acesso a eles, enquanto não fosse decidida a partilha dos bens.
A seguir fomos a outra casa, desta feita do amigo Ronaldo Ramos, que está ajudando outro parente a escrever suas memórias. Ele mesmo nos levou `a casa do vizinho, Seu Sebastião Leite Miguel, filho de Davi Miguel e Maria das Dores Leite (filha de Jose Ribeiro Leite e Ana de Aquino Leite), nascido em 1931. Seu Sebastião me disse que seu pai, Davi Miguel, foi registrado Davi Francisco Montemor, sobrenome da sua família. Mas que as crianças na escola o chamavam de Monte Mole. Então resolveu mudar de nome para Davi Miguel e a família passou a ser Miguel.
Seu Sebastião contou que o Comendador Leite tinha um irmão chamado Eduardo, e eram casados com duas irmãs. Vieram de um lugar chamado Santo Antônio de Pádua, no Estado do Rio. Comendador Leite trouxe dois escravos, um dos quais era chamado José Pedro e foi quem escreveu no tronco de uma árvore "Até aqui veio José Pedro", dando origem ao nome do rio. Passaram em Carangola e quando chegaram a um lugar chamado Príncipe (perto de onde é hoje Pequiá), acamparam num areião na beira do rio, onde fizeram um ranchinho. Tio Eduardo então disse "Aqui eu fico..." O Comendador seguiu, pois queria um lugar com uma queda d'água para fazer um engenho. Veio para o Córrego S. Domingos, onde fez um rancho (mais tarde uma casa com quinze janelas de frente e quinze de lado, segundo ouvi), engenho, monjolo, moinho e uma senzala).
É que, quando passaram em Carangola, havia contactado um fazendeiro que era traficante de escravos e, nos anos que se sucederam, comprou vários escravos deste homem. Contou que quando o Comendador ía escolher escravos (na maiora crianças ou adolescentes), o fazendeiro os colocava para jogar bola no terreiro, e assim, o comprador tinha uma noção de qual seria o mais esperto. Vinham nos cargueiros (balaios da tropa) em que o Comendador levava produtos para vender em Carangola (rapadura, café, arroz, acúcar mascavo). Na volta, trazia querozene, trigo, fardos de tecidos, e escravos). 
Perguntei-lhe sobre as "escravas escolhidas", ele disse que estas, ele devia passar direto para a fazenda no Ocidente.
"Maria Efigênia foi escrava do Comendador e contava muitas histórias para nós, crianças. Era parteira e trouxe `a luz os treze filhos da minha mãe" (Maria das Dores Leite, esposa de Davi Francisco Miguel, ex Montemor). 
Confirmou a história da prima Shirley sobre os tios Laudelino (Mendonça) Leite e Levindo Leite, filhos de José Leite com uma escrava (que só serviu como mãe de leite das crianças), mas foram registrados como filhos da esposa legítima Ana de Aquino Leite, e criados pelo casal.
A imagem barroca de N. Senhora de Nazaré, ele disse que o senhor proeminente que a doou para a esposa do deputado, não a comprou do Padre Rivadavia, que nem havia chegado em Lajinha ainda. Este senhor estava encarregado da paróquia enquanto não havia padre... Padre Rivadavia ainda tentou resgatá-la, sem êxito. 
Quanto `a Sesmaria do Comendador, disse que este posseou muita terra, onze mil alqueires no total. Perguntei se sabia de o Comendador ter doado terras para filhas ilegítimas em Laranja da Terra, como me disse a prima do meu pai, Iraci, e ele também não soube informar.

Abotoadura Comendador Leite, uma moeda de 250 réis.
Mas, me mostrou e me deixou fotografar, um vaso de cerâmica (de colocar água) e uma abotoadura (feita com moeda de Réis) do Comendador.


Quanto `a morte do Comendador, disse que Maria Efigênia, a escrava, contava para as crianças, que "O Comendador tinha um bezerra da qual gostava muito e a quem deu o nome de ............(tenta se lembrar, mas não se lembra). A novilha criou no pasto e o Comendador mandou um escravo busca-la. Ele voltou dizendo: Sinhozim, a vaca é muito brava. Então o  Comendador mandou que ele fosse juntamente com outros escravos e tocassem a vaca até o terreiro. Eles assim o fizeram, (a cavalo e sempre mantendo a distância, eu calculo) mas quando chegaram ao terreiro e o Comendador queria que a colocassem no tronco e lhe tirassem o leite, nenhum dos escravos se atreveu.
O Comendador, então, saiu da escada da frente da fazenda e foi em direção `a vaca, que lhe pegou com os chifres, matando-o na mesma hora. A esposa do Comendador, irritada, disse aos escravos: Morre um cidadão no meio de tanta gente e ninguém faz nada. Matem a vaca, tirem o couro que ela vai ser servida no velório. A velha mandou levar o corpo num banguê, para enterrar em Iúna. Os escravos fizeram uma cova numa matinha, na fazenda, onde havia o cemitério dos escravos, cujas sepulturas eram cercadas com cerquinha de madeira, ficaram escondidos três dias e voltaram dizendo que haviam enterrado o corpo do Comendador em Rio Pardo (Iúna). 
Vaso de cerâmica do
Comendador Leite, para guardar água (60 litros).


Perguntei-lhe se sabia os nomes dos genros do Comendador Leite, pois no site Wilkpeida,  sob o título História de Lajinha consta que "Segundo a tradição, foi Francisco Mateus Laranja quem dirigiu os trabalhos de derrubada da mata onde viria a crescer o povoado. Em 1910, o desbravador, junto com José Lucas de Barros, recebeu de Antônio Pedro Garcia, genro do Comendador Leite, um alqueire de terra onde foi erguida uma capela em honra a Nossa Senhora de Nazaré." Ele disse que também não sabia. Mas que Lajinha se chamava Angola, pois tinha muito Capim Angola (Shirley pode ter confundido quando disse que Lajinha se chamava Capim Gordura antes de se chamar Lajinha) e que o Rio S. Domingos não era drenado no local. O Comendador mandou que os escravos drenassem o rio e então apareceu a laje, que deu origem ao nome Lajinha. Pediram `a viúva um pedaço de terra no Areado e ela disse que dava na Angola.  

Visitei também o amigo Antônio Sathler Bretas, que me forneceu fotos do Engenho e da Tulha do Comendador, fotos tiradas antes que seu avó, Antônio Sathler demolisse as ruínas das duas construções, com membros da Família Sathler em frente `as mesmas. 
Ruínas da Tulha do Comendador Leite 

Ruínas do Engenho do Comendador Leite
Foto minha em frente ao muro de arrimo, de pedra,
 do terreiro da
 fazenda do Comendador Leite 
(ainda eis
E como ele estava acamado (por causa de um acidente de moto), sua esposa me levou para visitar o local onde era a casa da fazenda do Comendador, onde tirei foto em frente ao muro de arrimo (de pedra) do terreiro da fazenda, onde alunos das escolas locais ainda vão em excursões sobre a História de Lajinha.




(Nota: Hoje, 3 de janeiro de 2021, descobri através da sugestão de uma amiga do Facebook, Rosy Gripp, que leu minhas memórias e está escrevendo a história dos seus antepassados em forma de romance, os nomes dos filhos legítimos do Comendador Leite. Ela me perguntou se já havia publicado livros e eu disse que sim, coletâneas de poesia, com outros autores e um livreto em forma de Literatura de Cordel (Contestado), mas não as minhas memórias. Que estava tentando descobrir o nome da minha trisavó negra. Que o Comendador Leite tinha quatro filhos legítimos, mas eu só tinha o nome de um (José Leite Ribeiro). Rosy sugeriu que eu procurasse no site myheritage.com (eu já havia procurado no site ancestry.com algum tempo atrás e não encontrara. Então encontrei o nome de Gustavo Cerqueira Guimarães, um trineto do Comendador, em que cita os nomes dos filhos do Comendador como: 
-José Leite Ribeiro (pai de Arnaldo Leite e outros, incluindo tio Mendonça Leite e Levindo Leite, e bisavô da Shirley Oliveira Alvim).
-Antônio Leite Ribeiro
-Bernardina Leite Ribeiro
-Fausta de Aquino Leite (mãe de Alzira Ribeiro de Cerqueira e bisavó de Gustavo)
-Adélia Leite Ribeiro

Enfim, os filhos legítimos do Comendador não são quatro, como me disseram, e sim cinco. Fica a questão dos filhos ilegítimos, seriam apenas as gêmeas Julieta (minha bisavó) e Júlia (de cuja descendência ainda não consegui nenhuma informação)? E como se chamava a mãe delas?).


Biografia do Comendador Leite encontrada no site http://www.ceperj.rj.gov.br/concursos/santoantonio/HIST_CAMARA_ MUNICIPAL.pdf, sob o A Casa de Visconde Figueira, História da Câmara Municipal de Santo Antônio de Pádua (Primeira Edição, 2007), de autoria de Maria Thereza Caldas Vellasco e Marinice Vieira Daher, publicado pela Câmara Municipal de Santo Antônio de Pádua. De acordo com esta biografia, o Comendador mudou-se para o Espírito Santo (Córrego S. Domingos, em Rio Pardo, na época, onde Lajinha foi fundada), onde tinha 40 sesmarias, já com 79  anos. 


Francisco Thomaz Leite Ribeiro, o patriarca da Família Leite, conhecido como Cel. Chico Leite, mais tarde comendador, descendente de portugueses, nasceu em Juiz de Fora - Minas Gerais em 1810. Veio de Vassouras para Pádua em 1832, com 22 nos, já casado com Leopoldina Cândida de Barros Leite. Pouco depois, veio também o seu cunhado, Plácido Antônio de Barros: chegou, portanto, antes da fundação da cidade por Frei Florido, sendo assim, um dos primeiros moradores dessa região. Francisco e Cândida tiveram 24 filhos, perderam 19 e criaram 5, segundo elementos de sua família. Chico Leite, como era conhecido, aqui chegou atraído pela fertilidade do solo e facilidade, talvez, na aquisição de terras. As suas primeiras terras foram originadas das concessões de sesmarias, tão comuns e legais no decurso do 2º Reinado. Francisco Leite era muito rico. Tinha 40 sesmarias de terra aqui em Santo Antônio de Pádua e outras 40 no Espírito Santo. Homem de grande visão, em 1866, construiu uma ponte de madeira, conhecida como Ponte dos Leites, com mais ou menos 100 metros de extensão, em frente à sua propriedade, Cachoeira Alegre, hoje de propriedade de seu descendente Luís Fernando Padilha Leite. O objetivo foi para evitar o inconveniente da travessia, em balsas, das tropas com gêneros que se destinavam ao comércio nas praças da São Fidélis e Campos, e daí para o Rio de Janeiro. Hoje, no mesmo lugar, temos a Ponte Badih Chicralla, inaugurada em 31 de agosto de 2000 pelo Governador Anthony Garotinho. Além de grande proprietário de terras foi também negociante de madeira e café e um dos construtores do nosso município. Junto com Visconde Figueira e outros fez parte da Comissão que lutou pela criação da Vila de Santo Antônio de Pádua. A construção da Capela de Santo Antônio de Pádua, sagrada em 1842, segundo afirmavam habitantes mais antigos do arraial, se deve aos esforços conjugados do Comendador Chico Leite e seu cunhado Plácido Antônio de Barros, quando já estava em construção a nossa Matriz, a atual. Comendador Chico Leite amava a nossa terra, os campos, as aves, as montanhas, os cafezais e, antevendo a abolição da escravatura, alforriou, antes da promulgação da Lei, alguns de seus escravos. Como recompensa dos benefícios prestados ao nosso município, foi-lhe rendida significativa homenagem, ainda em vida, qual seja a denominação “Rua dos Leites” à principal artéria desta cidade. Deixou-nos exemplos de dignidade, amor ao próximo, à causa pública e muitos descendentes que constituem a Família Leite, uma das maiores do nosso município. Francisco Leite Ribeiro, trisavô do Prefeito Municipal Luís Fernando Padilha Leite e do Vereador Ralph Kezen Leite, hoje Presidente da Câmara Municipal. O Comendador, perdendo aqui seus bens, apesar da avançada idade (79 anos), foi tentar nova vida na Fazenda São Domingos, que possuía no Espírito Santo. Ele reuniu a dignidade de cidadão exemplar e a virtude que elevam um agricultor às alturas com prudência, moderação, sabedoria e trabalho. Fez de sua administração política, social e agrícola sua grande meta, com brilhantismo, com inteligência, com caráter, de bem servir à comunidade, onde não nasceu, mas onde construiu família e viveu por muitos e muitos anos. Francisco Thomaz Leite Ribeiro, por tudo que fez por Pádua, merece estar incluído, não só como Patrono da Cadeira n.º 06 da Academia Paduana de Letras, Artes e Ciências – APLAC, mas também nos anais da nossa história.

Nota: Fiquei surpresa de constatar que o Comendador Leite veio para Lajinha (que ainda não existia, apenas a sua fazenda, no Córrego que ele mesmo denominou São Domingos (pertencente a Rio Pardo, hoje Iúna, Espírito Santo), já com 79 (nasceu em 1810 anos e faleceu em 1893) então viveu em Lajinha por apenas 4 anos. Não vejo como pode construir tanta benfeitoria na propriedade, como mostram as fotos das ruínas da fazenda, que mostro a seguir.

No dia 6 de janeiro de 2021, o historiador Laurentino Gomes, cuja obra mais recente se intitula "Escravidão I", colocou uma postagem no seu Facebook com uma foto de Kamala Harris, a vice presidente eleita dos Estados Unidos:
"A partir do dia 20, esta será a mulher negra mais poderosa que jamais existiu. Como vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris é também presidente do Senado, onde terá o Voto de Minerva face ao empate entre republicanos e democratas - cinquenta cadeiras cada partido. As decisões da maior potência do planeta dependerão do seu aval". 
Os comentários foram muito interessantes, muitos deles dizendo que ela não era negra, e sim mestiça, pois é filha de negro jamaicano com indiana. Minha resposta foi:

Leonina Heringer- Nos Estados Unidos, ela e 99,9 por cento de nós, brasileiros, somos considerados negros. Aqui (moro nos Estados Unidos) não se usa mais a expressão, mas, até poucas décadas, dizia-se que “one drop” (uma gota de sangue negro) bastava para ser considerado negro.
Eu me orgulho da minha raça mestiça. Minha trisavó era negra, escrava do meu trisavô, Comendador Leite, de Lajinha (Minas) que foi um dos senhores com mais escravos, na região.
Infelizmente, só vim a descobrir minha ascendência africana aos cinquenta e oito anos, escrevendo minhas memórias. E, até o momento, não consegui encontrar o nome da minha trisavó.
É por este motivo (e por outros) que concordo com a expressão “Vidas negras importam”, apesar de todas as vidas importarem.
Qual foi o pecado que a minha trisavó cometeu para ser escrava? E qual o pecado que cometeu para ser esquecida?
Acho que nunca vou descobrir por que, meu pai, que se gabava da cor morena (dele e minha “cor de jambo, cor que não desbota”) nunca falou sobre este detalhe da bisavó dele... Será que nunca soube? Minha mãe, que ainda era viva na época, disse que não sabia. 
Cresci achando que minha trisavó fosse a esposa legítima do Comendador Leite.
Discriminação existe (e forte).
Também descobri que tenho outra trisavó índia, mas não passaram esta informação claramente de geração em geração, como foi feito pelos meus ancestrais, descendentes de portugueses, alemães e italianos...
Mas, não vou descansar, nem deixar de proclamar a minha mesticidade, aos meus descendentes, para que se orgulhem também.)

  


Joaquim Gomes Coelho - Vovô Quinca Silvestre


A Zilmar, prima do meu pai, me passou informações sobre o vovô Quinca Silvestre (meu bisavô, Joaquim Gomes Coelho, chamado de Quinca Silvesvestre por ser filho de Silvestre):
Pai: Silvestre Gomes Pereira; Mãe: Maria Rosa Coelho
Os irmãos de Joaquim Gomes Coelho: João Gomes Coelho (Juca Silvestre, pai da tia Nair, esposa do tio Osvaldo, irmão do meu pai), Antônio Silvestre (tio Totõe, pai do Seu Neném Silvestre, esposo da Alaíde), que se casou seis vezes,  José Gomes Coelho (tio Zeca, pai do Verotídio, esposo da Letícia do Seu João Caetano) e da Nhanhá), Vespasiano Gomes Coelho, Pedro Gomes Coelho, Teodora Gomes Coelho, mãe da D. Efigênia, casada com Seu Chico Suíço (Francisco José Krupp) ; Maria Gomes Coelho, e Josefina Gomes Coelho, esta última,mãe da Clarinda, da qual minha irmã herdou o nome. Aliás, o Sidney, filho do tio Quinquim, outro primo do meu pai, me deu os nomes de todos os filhos da tia Josefina: Mariza, Tarcila, Lucas e Clarinda. Ele disse que quando era vendedor da malharia, que tinha de sociedade com o cunhado Antônio Sanglard, sempre passava na loja do Lucas, em Espera Feliz, se me lembro bem.

Nota: Depois de uns quarenta anos sem ver, encontrei me no Facebook, com a filha da D. Efigênia Rodrigues de Oliveira (prima da minha avó Etelvina), Sebastiana de Oliveira Ferraz, residente joje em Espera Feliz, a qual me deu várias informações sobre a Família Gomes (primos da Vovó Etelvina). Disse me que a D. Maria Rodrigues, que eu pensava ser prima do meu pai, era viúva de Antônio Rodrigues, este irmão da mãe dele, Efigênia, e primo da Vovó Etelvina. Conheceu o Aristes (Aristides), Titina (Ernestina) e Sinhá (Efigênia, também), mas não sabe de quem eram filhos. Sebastiana teve dois irmãos, Maria e José. É viúva de José Gomes Ferraz  e tem os seguintes filhos: Maria de Fátima, Cleone e Lourdes, José Francisco, Ieda, Luciana e Luciene.

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Filhos do vovô Quinca com Julieta Maria de Jesus (a filha do Comendador Leite com a escrava):
Joaquim Gomes Coelho e filhas Etelvina (mãe do meu pai), Joaquina (tia Quininha),
 mãe de Nilton Gomes (Bililim) e tia Maria (mãe do Seu Júlio Vieira e Tarcília)
 . Etelvina Maria Gomes (minha avó), casada com Alvim Fortunato Gomes, cujos filhos são Osvaldo, Astrogildo, Maria (tia Lilica), Norival, Valmerinda, Valmira, Nolmerindo e 
Ataídes;
. Joaquim Gomes Filho (tio Quinquin), casado com Maria Vieira Gomes, pai do Sydnei, Amélia, Iraci e Eli (tia Lili, que se casou com meu tio Ataídes);
. Júlia Maria Gomes (tia Julica), casada com Pedro Domingos, cujos filhos são Mimita (Élima Élida ) e Jojô (José Joanez);
. Joaquina Gomes (tia Quininha), primeira esposa do Seu Geraldo Gomes e mãe do Bililim (Nilton Gomes);
. Maria Gomes, casada com Paulo Eliocádio e mãe do Seu Júlio Vieira Gomes e Tarcília;
. Julieta Gomes, casada com Antônio (Antõezin) de Oliveira, mãe do Abdias e Alandia;
. Eusláquio Gomes, casado com Eni Gomes, pai do Eney, Joaquim, Nilda e Gessi;
    . Antônio Gomes, tio Totônio, que morava no sítio que pertenceu ao Jaime Heringer e cuja esposa se chamava Maria, cujos filhos são Reinvir, Air, Renilda, Maria de Lourdes e Terezinha;
. Silvestre Gomes (Ti Véte), do qual não sei o nome da esposa, que morava no Côco, faleceu bem jovem, sem filhos, de hemorragia causada por um tiro, quando uma espingarda pendurada na cabeça do arreio do animal que cavalgava, disparou atingindo sua perna.


Caderneta de Anotações do meu bisavô Joaquim Gomes Coelho



O filho do primo do meu pai, Júlio Gomes Domingos, filho do Jojô (José Joanez Domingos) e da Leinice Vieira Gomes, me enviou o documento abaixo. Seus pais são primos, ambos descendentes do vovô Quinca (Joaquim Gomes Coelho) e a Leinice conserva uma cadernetinha dele, que o pai dela, Seu Júlio Vieira Gomes, filho da Maria, recebeu do avô e guardava com muito cuidado. Eram as anotações de todos os eventos importantes na vida dele. 


8 de janeiro de 1864 nasceu Joaquim Gomes Coelho

Casei-me com a Excelentíssima Senhora Dona Julieta Maria de Jesus, no dia 17 de janeiro de 1885. E nasceu a minha filha Maria no mesmo ano a 24 de outubro. 
Nasceu a minha filha Itelvina no dia 14 de setembro de 1887

Nasceu o meu filho Antonio no dia 14 de junho de 1889

Nasceu o meu filho Joaquim no dia 24 de agosto de 1890

Nasceu o meu filho Silvestre no dia 24 de dezembro de 1893

Nasceu a minha filha Julieta no dia 16 de março de 1896

Nasceu a minha filha Júlia no dia 3 de abril de 1903

Nasceu o meu filho Euslaquio no dia 8 de novembro de 1905

Nasceu a minha filha Joaquina no dia 6 de fevereiro de 1908

Casei a minha filha Maria no dia 15 de abril de 1906

Casei a minha filha Itelvina no dia 31 de julho de 1909

Nasceu a minha neta Tarcilia filha da Maria no dia 21 de dezembro de 1907

Nasceu meu neto Júlio no dia 8 de março de 1909
Nasceu  Izaltina (penso que é outra neta) em 17 de julho de 1911

Fiquei emocionada de ler as anotações do meu bisavô, especialmente por ver como  tratava minha bisavó, Julieta Maria de Jesus, filha de escrava, como Excelentíssima Senhora Julieta Maria de Jesus, a qual faleceu com quarenta e dois anos de idade.

Outro detalhe que me chamou a atenção e me fez muito feliz, foi o seu cuidado com a educação. "No dia1 de abril de 1910 abri uma escola".
 E mais de dez anos depois, escreve "No dia 2 de março de 1922 abri uma escola  pelo professor Aníbal (ou Amilcar, não dá pra ler bem) Rodrigues Pereira.
"Faleceu o meu sogro Francisco Thomas Leite Ribeiro
no dia (ilegível) de janeiro de 1893".
Também cita a morte do sogro Francisco Thomaz Leite Ribeiro (o Comendador Leite) num dia que não consegui ler, de janeiro de 1893. 
Vovô Quinca casou-se  segunda vez  com a tia Catuta (Idalina Vieira), que não era tia do meu pai, mas ele a chamava de tia por ser irmã da tia Lia (Maria), esposa do tio Quinquim (Joaquim). Teve dois filhos  com ela:
. Ademar Vieira Gomes, que se casou com Zilpha Alves Heringer (filha do tio Brilhantino, irmão do vovô Américo) e
Casamento do Tio Dedé e Tia Zilpha



 Anivaldo Vieira Gomes, tio Vadim.
Tio Dedé (Ademar) teve os seguintes filhos: Zilmar, Ilza, Adeíldo, Aloísio, Eniglacy, Sueli, Dalambert (Bezinho), Gilberto, Leíse e Liliane. 
Tio Vadim casou-se em primeiras núpcias com Cinira, com a qual teve os seguintes filhos: José Luís, Maria Celeste e Sueli. 
Casou-se a segunda vez com Maria Gomes, filha de Olímpio Gomes e prima do meu pai, que morava com a família do tio Astrogildo, e teve um filho, Nimar .

Vovô Quinca  anotou também o falecimento do segundo sogro "Martinho Vieira de Golveia no dia 13 de abril de 1928.

Vovô Quinca, com o neto Sidney, tio 
tio Brilhantino, com as netas Eny e Carmelita (descalço),
Vovô Américo (de terno escuro perto do Vovô Quinca.





Da família do meu avô  materno, Américo Marcelo Heringer, até que temos bastante informações, graças a pessoas que gostavam de escrever e registrar fatos e também de documentos em arquivos do Primeiro Reinado do Brasil (D. Pedro I), que tem registro do primeiro acordo formal feito para admitir imigrantes não católicos no Brasil. Portanto, mesmo tendo havido uma colônia de alemães no Sul da Bahia, a primeira leva de imigrantes alemães a chegarem no Brasil, reconhecida pela Coroa, foi a que veio no Navio Argus, saindo de Den Helder na Holanda.
 
O pai do vovô Américo, João Carlos Heringer, foi casado duas vezes e teve vinte e dois filhos. Depois que a primeira esposa, Isabel Emerick,  faleceu, casou-se com Antônia Raposo.
Segundo Berenice Heringer, no seu livro "Mineiralidade", João Carlos Heringer era um homem que economizava no que podia. Assim, diz-se que, certa vez, chegou na  estação de trem para comprar uma passagem e pediu que queria uma passagem de segunda pra terça. Não deu bem pra entender que queria uma passagem de "segunda classe" para a terça feira. Entretanto, era muito trabalhador e funcionava como um banco, emprestando dinheiro a juros e chegou a ter mais terras do que conhecia. Certa vez, passando por um sítio, perguntou ao morador de quem eram aquelas terras. O morador respondeu que não conhecia pessoalmente o dono, mas que era um tal de "Carlos Heringer", ele próprio.
Era muito econômico e quando comprou um carro, um Ford 29 (ou 30), segundo tia Alvelina, filha mais nova de João Carlos Heringer, nos seus "Escritos Esparsos", anotações compiladas em livro pela prima Berenice Heringer), comprava-o sem os faróis e sem a capota, pois saía muito mais barato. Então, tio Afonso, que era o motorista oficial da família, usou uma estratégia bem eficiente para equipar o  veículo.  Numa viagem a Manhumirim,  escolheu um dia em que  só de olhar para o céu, sabia-se que iria chover mais tarde. Então,  como iriam  ficar molhados pelo chuva, Vovô João disse "

compra "gabota". De outra feita, tio Afonso se atrasou de propósito e já saíram  de lá   com escuro. E Vovô João  então autorizou "Compra farola".
Quando  comprou as terras ao longo do córrego a quem ele mesmo deu o nome de Laranja da Terra, pela fruta nativa encontrada no meio da mata, meu avô Américo era adolescente.  Veio com o pai, vovô João, para ver as terras. Pararam num pequeno rancho no meio da mata. Do lado de fora havia um pilão, e um menino nu brincava dentro dele. Chegaram e começaram a conversar com a mulher que, depois  de alguns minutos, perguntou ao meu bisavô se ele aceitava um café e ele disse que sim.  Ela, então, saiu para o terreiro, cortou umas canas, picou-as em pedaços.  Mandou o menino sair do pilão, limpou-o rapidamente com um pano seco, pegou uma mão de pilão  e socou a cana dentro dele. Colocou a mistura pra ferver com água e passou o café num coador de pano. Meu bisavô, vovô João, tomou o café. Quando saíram, perguntou ao filho Américo: “Ô menino bobo, por que não tomou o café?”  O rapaz então explicou que vira onde e como ela preparara a cana para o café, através dos buracos na parede do rancho.
Tio Elói, Vovô Américo e tio Brilhantino
Minha mãe contava que na véspera do dia em que devia fazer o pagamento das terras que comprara em Laranja da Terra, assaltantes chegaram na sua Fazenda Rancho Alegre em Alto Jequitibá e renderam toda a família, querendo o dinheiro. Amarraram todos nas cadeiras na sala, ficando um jagunço vigiando com uma arma, enquanto os outros reviravam tudo para ver se encontravam o dinheiro. Minha mãe disse que o vovô Américo contava que o tio Afonso era garoto e não conseguia ficar acordado e cochilava amarrado na cadeira. Vovô João havia viajado na véspera. Foram embora sem nada. Os ladrões estavam lá a mando do próprio vendedor, do qual eram empregados, um homem da região de Pequiá, tendo sido reconhecidos como tal pelo pessoal da casa.
De uma outra feita, vovô João estava viajando a cavalo e foi parado por um assaltante que o revistou todinho e não encontrou nenhum dinheiro. Acabou dando-lhe uns chutes na bunda, dizendo: "Velho rico sem vergonha, andando sem nenhum dinheiro." O dinheiro estava no bolso de trás da calça, uma novidade na época,  da qual os ladões não sabiam ou não se lembraram.
Quando os filhos do Vovô João estavam abrindo clareira nas terras em Laranja da Terra, vovô Américo e outros fizeram uma cabana com pernas de pau bem altas e colocaram uma escada para subir. Certa noite, a onça estava rosnando no pé da escada e tiveram que jogar a escada lá embaixo.

Conta-se que o Vovô João vendeu ou emprestou dinheiro para um jovem chamado Alvim Fortunato Gomes, comprar uma fazenda. Na data marcada para receber, este foi`a casa do credor e o mesmo lhe disse que não tinha todo o dinheiro para pagar. Vovô João disse-lhe que não se preocupasse que ele iria lá ver a propriedade. Chegando lá, viu que Vovô Alvim havia plantado muito café, o chiqueiro estava cheio de porcos gordos e havia muito milho e outros cereais no paiol. Vovô João disse ao meu avô Américo que o estava acompanhando "O homem é trabalhadeira, ele paga..." E foi-se embora. Sem saber que, dali a alguns anos, o filho daquele senhor, meu pai, Norival,  iria se casar com a sua neta, minha mãe, Erandi, que ele não chegou a conhecer. Faleceu no dia sete de setembro de 1931.    Ela nasceu um mês e pouco depois, em doze de outubro de 1931. Depois da sua morte, quando de uma reforma na casa, os filhos encontraram muito dinheiro escondido nas paredes.

Vovô Américo e vovó Leonina
                no Rio de Janeiro (anos  20)
O meu outro bisavô materno chamava-se Filadelfo Mariano de Freitas, filho de Narciso Antônio de Freitas e Cândida Theresa de FreitasSegundo minuciosa pesquisa feita sobre a Família Freitas, pelo primo Daniel Charles Heringer Gomes, Vó Candinha, como alguns ainda se lembram dela ser chamada, era, ela mesma índia (provavelmente puri) ou filha de índia, "pega a laço",  para trabalhar nas fazendas, forma que os brancos usavam para conseguir mão de obra escrava.  Tia Edil já havia me falado que a vovó Leonina tinha uma avó índia, mas eu pensava que fosse pelo lado da vovó Arminda (esposa do bisavô Filadeldo).
Da mesma pesquisa, viemos a saber que Narciso Antônio de Freitas e Cândida Theresa de Freitas tiveram quatorze filhos (os quatro primeiros com Registro de Batismo apenas):

1.    1Maria de Freitas (b. 11/06/1869 em São Francisco de Paula, atual Trajano de Moraes, RJ)

2.    Ana de Freitas (b.  22/08/1870 em São Francisco de Paula, atual Trajano de Moraes, RJ)

3.    Cândida de Freitas (b. 24/06/1872 em São Francisco de Paula, atual Trajano de Moraes, RJ)

4.    Joana de Freitas (b. 31/08/1873 em São Francisco de Paula, atual Trajano de Moraes, RJ)

5.    Georgiana Alves de Freitas (n. 12/08/1874  em São Francisco de Paula, atual Trajano de Moraes, RJ; m. 1948 em Iúna, ES)

6.    Filadelfo Mariano de Freitas (n. 07/12/1875 em São Francisco de Paula, atual Trajano de Moraes, RJ; m. 02/04/1967 em Itabirinha de Mantena, MG)

7.    Júlia Cândida de Freitas (n. 28/11/1881 em Carangola)

8.    Teodora Cândida de Freitas

9.    Leonora de Freitas

10.  Micaela de Freitas

11.  Otaviano de Freitas

12.  Nestora Adriana de Freitas (n. aprox. 1890)

13.  Rafaela de Freitas

14.  Antenorgenes de Freitas (n. 16/07/1894 em Carangola, MG (?); m. 10/09/1963 em Governador Valadares, MG)

 



)
 E minha bisavó Arminda Antônia de Freitas, era filha de Ovídio Alves da Silva e Emília Antônia Soares.  Vovô Ovídio, minha mãe o conheceu já bastante idoso. 
Oirmão do Vovô Filadelfo, Antenogênio de Freitas, mudou de nome para Alcino de Oliveira.  A irmã Micaela de Freitas (tia Mimi) cujo esposo se chamava Arnaldo, morava em Niterói.
A irmã Georgiana Alves de Freitas, casou-se com Frederico Alves de Freitas (como consta da certidão de óbito, não devia ser este o sobrenome), devem ter colocado o da esposa) pois era filho de Antônio Reis Jorge e Brígida Joepha de Carvalho . Tiveram os seguintes filhos: Alzira Alves de Freitas, Zulmira Alves de Freitas, Dolariza Alves de Freitas e José Carlos de Freitas. 
Tio Fidirico (Frederico), como minha mãe se referia a ele, ficou doente mental. Não passava em estradas novas e, mesmo morando, certa época, numa casa no terreiro  da Fazenda Flor da Mata, de propriedade da filha Alzira e genro Lindolfo, não entrava na  cozinha, pois esta tinha três portas. 

Meu avô materno, Américo Marcelo Heringer nasceu em 16 de janeiro de 1896 e casou-se com minha avó Leonina Soares de Freitas (que se tornou Leonina de Freitas Heringer) em 25 de dezembro de 1920. Ele tinha vinte e quatro anos e ela dezesseis. O Seu Vertulino Pereira de Souza, que era casado com a Zulmira, prima da vovó Leonina, contava que logo depois do casamento, vovô Américo "ía na estrada conversando com os sogros e a Leonina, ía na frente, saltando como uma criança, que ainda era".
Depois de uns dois anos de casados, foram passear no Rio de Janeiro, na casa da tia Mimi e tio Arnaldo, e foi quando ela engravidou da tia Elzina, me parece. Depois nasceu o tio Gil.
Quando tio Gil era ainda bem pequeno, Vovô Américo e Vovó Leonina foram ao Rio de Janeiro novamente. Tia Mimi e tio Arnaldo dormiam em camas separadas, no mesmo quarto (talvez um costume da Modernidade, introduzido pela Teoria do Individualismo, nos anos 20). Tio Gil notou o detalhe e comentou com os pais:"Mas, aposto, que, de noite, ele passa pra cama dela."

 

Minha mãe contava que os seus pais tiveram muita dificuldade em manter uma vaca leiteira para tratar das crianças, pois na época, havia tantos mosquitos que o animal não resistia e morria. Passaram a criar uma cabrita, amarrada perto da casa, para tal fim. Tia Elzina contava que ela e o tio Gil tiveram uma babá por nome Maria José, que tinha o apelido de Bezé. 

Na época em que minha mãe era criança, a condução usada era o carro de boi. Vovó Leonina, quando ía a Lajinha, levava as crianças menores no carro de boi e as maiores íam caminhando. Pernoitava na casa da prima Júnia,   esposa do Seu Manuel Aguiar (e filha da irmã do Vovô Filadelfo, Júlia Cândida de Freitas), no Areado.

Vovô Filadelfo era tropeiro e contava que certa vez, tinha um garoto que ajudava a cozinhar para ele que não catou o feijão antes de cozinhar. Quando foram comer, estava cheio de pedras. Vovô então perguntou se ele não havia catado o feijão e ele respondeu: Seu Filadelfo, quem quiser com pedra tira por baixo; quem quiser sem pedra tira por cima. Mais tarde, já casado com a Vovó Arminda, comprou a fazenda onde nasci no final do Córrego Laranja da Terra, tendo como avalista o genro, meu avô Américo Marcelo Heringer, esposo da Vovó Leonina.  Mas, na época da Grande Depressão, estavam para perder a fazenda para o banco. Devido `a Queda da Bolsa de Nova Iorque, o café passou a não valer nada, de tal forma que se queimavam grandes quantidades do produto. O genro, vovô Américo, o avalista, vendeu a fazenda que tinha na cabeceira do mesmo córrego para o cunhado Aurino Emerick, esposo da tia Ambrosina, pagou a dívida e ficou com a fazenda do sogro. Vovô Filadelfo mudou-se para o Norte do Espírito Santo, um lugar chamado Pancas.
Vovó Arminda e tio Reginaldo (filho dela)
Em Pancas, comprou um sítio onde havia umas pedras interessantes, facetadas, tipo lapis e coloridas. Não precisavam nem cavar para encontrá-las, achavam-nas até na superfíce. Entretanto, o lugar era muito perigoso. Havia uns assassinos que, por qualquer coisa, levavam as pessoas para uma cachoeira e lá as assassinavam. Como não havia justiça, seguiam impunes com seus crimes.
Tio Reginaldo, irmão da vovó Leonina, era jovem e muito positivo e acabou por ser levado pelos assassinos para a cachoeira também. Só que não tiveram coragem de matá-lo… Vovó Arminda, a mãe dele, não quis ficar em Pancas…
Alcino, Vovó Arminda e Vovó Leonina
Como haviam se tornado amigos da família do Seu Pedro Marcolino, pessoas muito boas que estavam se mudando para Itabira (Itabirinha), resolveram mudar-se para lá também. Não passou muito tempo e descobriu-se que as pedras de Pancas eram pedras preciosas, e o homem que comprara os sítios do vovô e do Seu Pedro Marcolino, ficara muito rico.
Por outro lado, a vida da família em Itabira foi muito próspera também. Tio Reginaldo montou um armazém e depois um posto de gasolina. A princípio, viajava para Valadares com um galão de metal que trazia com gasolina para vender, depois montou o posto. E comprou várias casas na “rua” como se costumavam referir  ao vilarejo. (Nota: Foi uma dessas casas do tio Reginaldo que meu pai alugou e na qual chegamos de mudança).
  Quando vovô Américo e vovó Leonina foram visitá-los, em Itabira, compraram terras lá também, onde os filhos (tio Joel e Jeronil, e depois Adiles e Elzina) foram morar e tiveram grande sucesso. Divina Providência...
Vovó Arminda ficou paralítica, conta-se que foi porque saiu na chuva com o corpo quente, depois de ter torrado café. Ficou muito depressiva, pois era uma mulher muito dinâmica. Trabalhava bastante, fazendo doces para a venda que o filho Reginaldo tinha em Laranja da Terra, a venda na propriedade do tio Brilhantino, que no meu tempo era de um tal de Chico Rosa e depois do Jairo Heringer. Mas gostava de viajar e estava sempre indo ao Rio de Janeiro, pois tinha a cunhada que morava em Niterói, a tia Mimi, irmão do Vovô Filadelfo. Levava as amigas que precisassem de se tratar e há uma foto em que ela, minha avó Etelvina, mãe do meu pai e a tia Verônica, irmã do vovô Américo
Tia Verônica, Vovó Arminda e Vovó Etelvina

estão no Rio de Janeiro, muito elegantes, de chapéus.
O certo é, que quando se mudaram para Itabira, não sei até que ponto viajaram de caminhão, se é que viajaram. De um determinado ponto em diante, ela foi na cadeira de rodas, dentro do carro de bois, no qual também ía o cachorro da família. Com as estradas muito ruins, num certo momento, o carro de bois tombou, derrubando toda a carga. Todos ficaram alarmados, querendo acudir a Vovó Arminda, cuja primeira reação foi perguntar pelo cachorro, para saber se havia se machucado.


Meu pai, Norival Fortunato Gomes, nasceu no dia 8 de setembro de 1918. Cresceu cercado de irmãos e irmãs, tios e tias. O avô dele, Joaquim Silvestre Gomes, ficou viúvo da Vovó Julieta e casou-se com D. Catuta Vieira e teve dois filhos, tio Dedé (Ademar) e tio Vadim (Anivaldo). Tia Filhinha (também Julieta), irmã da vovó Etelvina era a costureira oficial da família e passava dias na casa da vovó Etelvina costurando, Certa vez, fez um terninho para o meu pai. Ele estava todo feliz, até que chegou um fotógrafo e vestiram o terninho dele no tio Vadim, mais ou menos da mesma idade (seis, sete anos...) para tirar fotografia. Ficou furioso e, da próxima vez que o tio Vadim foi `a casa dele, travou uma luta com ele, jogando-o na lama. Deram banho nos dois, mas como tio Vadim não tinha roupas extras para vestir, colocaram o terninho do meu pai nele para voltar para casa. Como ele dizia "fiquei com o chifre doído pela segunda vez".

Quando meu pai tinha dez anos, passou por Laranja da Terra, indo para Lajinha, o primeiro caminhão. A estrada cheia de morros, o pior sendo o Morro da Padaria do Seu João Gomes, o homem que colhera assinaturas para passar Laranja da Terra para o Estado do Espírito Santo. Meu pai foi o candeeiro dos bois que puxaram o caminhãozinho morro acima na área próxima `a fazenda do vovô Alvim, que na minha época de criança era a fazenda pertencente ao Seu Alvino, pouco abaixo da fazenda do vovô Américo. Contava ele que, quando o caminhão apareceu na estrada, a lavadeira da vovó Etelvina, Maria Veridiana, estava carregando uma bacia de roupas na cabeça, que jogou no chão, saindo correndo e gritando:"D. Etelvina, lá vem uma casinha azule arrasano o mundo".
 O motorista do caminhão dormiu na fazenda e o assunto era "chofer pra cá, chofer pra lá". A Maria, pensando que a carga do caminhão, vasos de cerâmica, tivessem este nome, comentou: "O caminhão tá lotado de chofer".                               
Só vou introduzir aqui um detalhe: a história dos transportes evoluiu muito rapidamente em Laranja da Terra, pois, se em 1928, passou por lá o primeiro caminhão, bem antes de eu nascer, em 1953, quando eu nasci, já existia o campo de avião na fazenda do tio Elói. Não sei em que ano o Adiel, filho dele, começou a pilotar, mas, como já mencionei,  a tia Edil contava que, na primeira vez em que ele foi a Laranja da Terra de avião, o tio Elói fez festa três dias para a inauguração do campo. Muitas pessoas tiveram a oportunidade de "dar uma voltinha" com ele no avião. Tio Elói era tão bom com a gente, sempre com a mesma expressão depois que a gente falava:"Tá dereito". Tio Aurino também tinha um avião , pilotado pelo genro Magalhães.

Meu pai serviu o Exército no Rio de Janeiro, tendo feito parte do Batalhão de Guardas e servido na Guarda do Palácio Presidencial nas gestões dos Presidentes Getúlio Vargas e Eurico Gaspar Dutra. Durante o tempo em que morou no Rio de Janeiro, oito anos ao todo, fez também o Artigo 99, equivalente do Curso Ginasial, no Instituto de Ciências e Letras do Rio de Janeiro.  


Norival Fortunato Gomes, meu pai, foi escolhido para
o Batalhão de Guardas Presidencial. Apenas os de boa
aparência e com certa classe eram escolhidos.
Quando o tio Joel e tio Jeronil se mudaram para Itabira, em 1950, meu pai já havia dado baixa no Exército e voltado para Laranja da Terra. Minha mãe, treze anos mais nova do que ele, menina ainda, já sentia uma grande atração pelo vizinho que vinha do Rio de Janeiro desfilando o seu uniforme. Entretanto, foi nesta mudança dos tios para o Norte, que o meu pai foi convidado para ir junto como motorista, além do Seu José , o Adenílio e o Jeús. Minha mãe e a Iracema, irmã da tia Jeni, foram para ajudar com as crianças e nas obrigações. Gilza tinha menos de dois anos e o Jesonias dois meses. Tia Adenair, esposa do tio Jeronil, não foi porque estava grávida, perto de ter o bebê. 
O caminhão, além da mudança e das pessoas, levava tijolos e cimento. De São Sebastião (uma vila bem pequenina que existia depois de Mendes Pimentel) prá lá, não tinha como o caminhão passar, pois não tinha ponte. Ficaram numa casa onde a mulher matou uns frangos para jantarem. Um carneiro cismou com o meu pai e não podia vê-lo que vinha dar-lhe cabeçadas. Tio Joel mandou o Adenílio a Itabira buscar animais para levar as mulheres e as crianças. Minha mãe sugeriu que fôssem caminhando até encontrar-se com os animais. Meu pai, Norival, foi a cavalo, pra Mantena, resolver documentação pro tio Joel. 
Batalhão de Guardas Rio de Janeiro
               (Meu pai, Norival, no meio, em pé) 
A minha mãe carregava o Jesonias e a Iracema, a Gilza. Quando chegaram a Barra do Funil, havia uns pés de laranja carregados. "Forrei um pano no chão, coloquei o Jesonias e ficamos chupando laranja", minha mãe contava. "Aí os animais chegaram e a mudança ficou pra ser buscada depois que arrumassem a ponte. Ficamos um mês lá. Não tinha água encanada; tínhamos que lavar as roupas no rio; `as vezes quatorze calças. 
Casamento dos meus pais (Erandi e Norival)
1952
Seu Pedro Marcolino, o amigo do vovô Filadelfo, que era confrontante, estivera tomando conta da fazenda para os tios Joel e Jeronil.
Era para o tio Jeronil voltar para olhar os negócios do caminhão que haviam comprado dos primos Werner em Realeza, mas o tio Joel decidiu que era melhor ele mesmo voltar. Tia Adenair, que esperava o tio Jeronil, chorou muito quando viu que ele não havia vindo.
Meu pai voltou também e quando, um mês depois, minha mãe chegou com a Iracema, ele foi `a casa dela para saber notícias do pessoal que havia ficado em Itabira. Começaram a namorar. 
Eu (Leonina) aos seis meses de idade,
 com meu bico vermelho de balãozinho
Minha mãe disse que os pais dela não eram favoráveis ao casamento dos dois, pelo fato de o meu pai ser de família católica. Entretanto, ela pensava que os Fortunato eram muito bons pra família e não teve dúvidas em se casar com ele. O primeiro beijo foi na véspera do casamento e ela disse que não dormiu direito `a noite, preocupada com o acontecido.
No ano seguinte, em 23 de janeiro de 1953, eu nascia.

Vou interromper minha narrativa novamente para dar uma palinha sobre os ancestrais do meu avô materno, Américo Marcelo Heringer. Não porque ele mereça mais atenção do que os outros avós, simplesmente porque tenho mais informações sobre a família dele do que dos outros.
Para isto, vou ter que voltar na História do Brasil e do mundo, dois séculos atrás.